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memória
Despretensiosa, obra foi ofuscada por Jorge Amado
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
As memórias, forma a
que Zélia Gattai se
dedicou com maior
afinco ao entrar tardiamente
na arena literária, são um gênero curiosamente híbrido.
No meio do caminho entre a
reportagem e a ficção, entre
o compromisso de contar a
verdade e entreter o leitor,
entre a fluidez autobiográfica e o rigor narrativo, apresentam dificuldades das
quais a crítica em geral prefere se manter afastada.
Assim, é tentador dizer
que é por isso que a quase
uma dezena de volumes de
Zélia -abarcando desde a
experiência de seus pais como imigrantes na São Paulo
no início do processo de industrialização até o convívio
com artistas, políticos e escritores de quem ela e seu
marido, Jorge Amado, desfrutaram na Europa e em
Salvador- não mereceu estudos mais aprofundados.
Por outro lado, a obra de Pedro Nava, nome maior do
nosso memorialismo, já foi
bem analisada em ensaios
curtos e mais alentados.
Uma hipótese provável,
portanto, diz respeito à despretensão de sua prosa, sua
transparência e simplicidade
-próximo do argumento de
que ela não passaria de uma
"contadora de histórias".
A autora insistia nessa tecla, a mesma usada por Erico
Verissimo, que assim também gostava de se autodefinir. Não por acaso, só de uns
dez anos para cá é que os textos de Erico passaram a ser
mais comentados.
Claro que conta, no caso
dela, a imensa sombra projetada por seu marido mais famoso. Não se pode chamar a
crítica de machista por se
deixar levar por essa circunstância. A própria autora cultivou a sombra como terreno
por excelência a partir do
qual investiu na literatura.
Como ela conta, iniciou a
carreira literária datilografando e copidescando os originais de Jorge Amado, muitas vezes opinando sobre
eles. Foi o marido, aliás,
quem a incentivou a lançar-se escritora e urgiu para que
ela não alçasse grandes vôos,
conservando-se presa à matéria firme do relato pessoal.
Zélia seguiu à risca os conselhos. De toda sua obra contam-se um romance e três
volumes infanto-juvenis. O
restante são suas memórias.
Além disso, tirando seu volume inicial, "Anarquistas,
Graças a Deus", que se centra
na aventura dos pais, as
obras restantes de Zélia contemplam o cotidiano vivido
ao lado do marido. "Senhora
Dona do Baile" cobre os anos
passados no exílio europeu,
nos quais as dificuldades do
pós-Segunda Guerra se mesclam ao trato com personalidades como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir,
Paul Éluard e Picasso.
"A Casa do Rio Vermelho"
descreve o período em que
Zélia e Amado viveram na residência do título, em Salvador, adquirida graças à venda
dos direitos de "Gabriela,
Cravo e Canela" para Hollywood, ou seja, no entender
do romancista, devido ao "dinheiro do capitalismo americano". A irônica referência é
sintomática não só da virada
artística do autor baiano a
partir desse romance mas
também do espírito plácido e
condescendente que muitas
vezes emana dos textos de
sua mulher, Zélia.
Os conflitos quase inexistem na obra da memorialista
ou, quando se apresentam (a
repressão ao movimento sindical em "Anarquistas..."; a
ditadura de Vargas e a separação do filho em "Senhora
Dona do Baile"), são rapidamente nuançados por atenuantes ou pelo curso da "vida". Anarquismo e catolicismo, materialismo e religião,
comunismo e a elite baiana
-tudo parece sincretizar-se
e harmonizar-se numa aparente serenidade na obra de
Zélia. Uma obra que agora,
mais do que nunca, precisa
sair da sombra.
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