São Paulo, domingo, 18 de maio de 2008

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memória

Despretensiosa, obra foi ofuscada por Jorge Amado

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

As memórias, forma a que Zélia Gattai se dedicou com maior afinco ao entrar tardiamente na arena literária, são um gênero curiosamente híbrido. No meio do caminho entre a reportagem e a ficção, entre o compromisso de contar a verdade e entreter o leitor, entre a fluidez autobiográfica e o rigor narrativo, apresentam dificuldades das quais a crítica em geral prefere se manter afastada.
Assim, é tentador dizer que é por isso que a quase uma dezena de volumes de Zélia -abarcando desde a experiência de seus pais como imigrantes na São Paulo no início do processo de industrialização até o convívio com artistas, políticos e escritores de quem ela e seu marido, Jorge Amado, desfrutaram na Europa e em Salvador- não mereceu estudos mais aprofundados. Por outro lado, a obra de Pedro Nava, nome maior do nosso memorialismo, já foi bem analisada em ensaios curtos e mais alentados.
Uma hipótese provável, portanto, diz respeito à despretensão de sua prosa, sua transparência e simplicidade -próximo do argumento de que ela não passaria de uma "contadora de histórias".
A autora insistia nessa tecla, a mesma usada por Erico Verissimo, que assim também gostava de se autodefinir. Não por acaso, só de uns dez anos para cá é que os textos de Erico passaram a ser mais comentados.
Claro que conta, no caso dela, a imensa sombra projetada por seu marido mais famoso. Não se pode chamar a crítica de machista por se deixar levar por essa circunstância. A própria autora cultivou a sombra como terreno por excelência a partir do qual investiu na literatura.
Como ela conta, iniciou a carreira literária datilografando e copidescando os originais de Jorge Amado, muitas vezes opinando sobre eles. Foi o marido, aliás, quem a incentivou a lançar-se escritora e urgiu para que ela não alçasse grandes vôos, conservando-se presa à matéria firme do relato pessoal.
Zélia seguiu à risca os conselhos. De toda sua obra contam-se um romance e três volumes infanto-juvenis. O restante são suas memórias.
Além disso, tirando seu volume inicial, "Anarquistas, Graças a Deus", que se centra na aventura dos pais, as obras restantes de Zélia contemplam o cotidiano vivido ao lado do marido. "Senhora Dona do Baile" cobre os anos passados no exílio europeu, nos quais as dificuldades do pós-Segunda Guerra se mesclam ao trato com personalidades como Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Paul Éluard e Picasso.
"A Casa do Rio Vermelho" descreve o período em que Zélia e Amado viveram na residência do título, em Salvador, adquirida graças à venda dos direitos de "Gabriela, Cravo e Canela" para Hollywood, ou seja, no entender do romancista, devido ao "dinheiro do capitalismo americano". A irônica referência é sintomática não só da virada artística do autor baiano a partir desse romance mas também do espírito plácido e condescendente que muitas vezes emana dos textos de sua mulher, Zélia.
Os conflitos quase inexistem na obra da memorialista ou, quando se apresentam (a repressão ao movimento sindical em "Anarquistas..."; a ditadura de Vargas e a separação do filho em "Senhora Dona do Baile"), são rapidamente nuançados por atenuantes ou pelo curso da "vida". Anarquismo e catolicismo, materialismo e religião, comunismo e a elite baiana -tudo parece sincretizar-se e harmonizar-se numa aparente serenidade na obra de Zélia. Uma obra que agora, mais do que nunca, precisa sair da sombra.


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