São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2010

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Fantasias e realidades


Acreditar nas palavras do regime político iraniano pressupõe uma ingenuidade


SERÁ POSSÍVEL? Será verdade? Será relevante? Três perguntas para uma notícia só: o acordo entre o Irã, a Turquia e o Brasil sobre troca de combustíveis nucleares. Segundo o ministro das Relações Exteriores da Turquia, a ideia é simples: o Irã envia urânio baixamente enriquecido para outro país; no retorno, recebe urânio altamente enriquecido, apenas para fins pacíficos. O Irã, no momento em que escrevo, concordou com a proposta.
A notícia talvez alegre os otimistas. Por que motivo não me alegra a mim? Em primeiro lugar, porque acreditar nas palavras do regime iraniano pressupõe uma ingenuidade que está interdita a quem se interessa por política internacional.
Mas, sobretudo, porque mesmo que o Irã aceite o acordo (no papel), isso nada significa (na prática): o regime tem sido exemplar em promessas diplomáticas que apenas compram tempo para que Teerã continue a sua imperiosa cruzada para chegar à bomba. E imperiosa por quê?
A resposta é dada por James M. Lindsay e Ray Takeyh no último número da revista "Foreign Affairs". É um ensaio que aconselho ao presidente Lula e a seus assessores. Primeiro ponto: a obtenção de armamento nuclear não é um capricho de Teerã. É um imperativo estratégico que tem sido constante em vários governos, ainda que por motivos distintos.
Nas presidências de Hashemi Rafsanjani (1989-1997) e de Muhammad Khatami (1997-2005), a bomba era vista como elemento dissuasor ante qualquer ameaça externa, quer dos EUA, quer do Iraque de Saddam Hussein.
Com a remoção de Saddam (um favor irônico que os Estados Unidos fizeram ao regime iraniano), sobra a ameaça de Washington: o Irã sabe que, se Saddam tivesse armamento nuclear, George W. Bush jamais teria marchado para o Iraque.
Mas a bomba não confere apenas essa segurança face a terceiros. O Irã confia que a capacidade nuclear permite reforçar o poder dos aiatolás e projetá-lo em termos regionais.
Acreditar que o Irã abre mão do seu programa nuclear graças ao charme de Lula é acreditar que o regime está disposto a renunciar a uma quimera que se tornou em verdadeira causa identitária nacional.
É por isso que, na opinião de Lindsay e Takeyh, mais vantajoso do que acreditar nas palavras do regime iraniano é fazer com que o regime acredite nas palavras da comunidade internacional. Essas palavras devem começar por mostrar ao Irã que todas as esperanças que o regime deposita na bomba são infundadas. A começar pela esperança de ser o principal agente do Oriente Médio. Dificilmente isso sucederá.
Para começar, a mensagem revolucionária xiita não parece convencer os restantes Estados árabes (sunitas) que sempre olharam para o Irã como uma ameaça, e não como um exemplo a emular. Com a bomba, esse cenário não se altera. E, ao contrário do que os aiatolás imaginam, também não se altera a hegemonia americana no Oriente Médio. Um Irã nuclear implicaria um reforço da presença americana na região, uma presença desde logo solicitada por Estados como o Egito ou a Arábia Saudita.
Por último, convém lembrar o óbvio: se o Irã persistir na sua busca, a possibilidade de um ataque preventivo israelense é real; e será uma fatalidade se o Irã armar os seus grupos terroristas (como o Hamas, em Gaza; ou o Hezzbollah, no Líbano) com armas de destruição maciça. Moral da história? Lindsay e Takeyh, com gélido realismo, concluem: o mundo deve preparar-se para um Irã com capacidade nuclear. Mas o mundo, confrontado com essa séria hipótese, deve preparar-se também para estabelecer as "red lines" que o Irã não poderá cruzar, sob pena de retaliações militares imediatas.
As "linhas vermelhas" são três: iniciar hostilidades contra outros países; transferir armamento, material e tecnologia nucleares para outras nações; apoiar ou armar grupos terroristas. Será que o Irã entenderia esses três avisos? Os autores garantem que sim: o regime sempre se pautou por uma mistura paradoxal de zelo ideológico e pragmatismo político que, até o momento, garantiu a sobrevivência da República desde a revolução de 1979.
Pessoalmente, tenho dúvidas: confiar na racionalidade do regime é esquecer a retórica genocida e os atos criminosos destas últimas três décadas. Mas também confesso que, perante o impasse do dossiê iraniano, prefiro a abordagem desencantada dos estudiosos ao lirismo insensato dos políticos.

jpcoutinho@folha.com.br


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