São Paulo, segunda, 18 de maio de 1998

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BASTIDORES DA GLOBO
Militares não impuseram padrão, diz Boni

da Reportagem Local

José Bonifácio de Oliveira Sobrinho (Boni), vice-presidente de operações da Globo até o ano passado e consultor da emissora, disse à Folha que o Padrão Globo de Qualidade não foi imposto pelos militares. O que os militares impuseram, segundo ele, foi a cor na TV. Na entrevista a seguir, ele conta que houve intervenção militar na Globo nos anos 70. (MCC)

Folha - Paulo Cesar Ferreira sugere que a Globo contrabandeou equipamentos para chegar ao interior paulista. É verdade?
José Bonifácio Oliveira Sobrinho (Boni) -
Minha área na televisão sempre foi a artística, mas eu tinha informações de todos os procedimentos. A hipótese de contrabando fica eliminada porque a TV tinha isenção de 100% na importação de seus equipamentos.
Como havia um prazo longo para a fabricação das antenas de microondas e era demorado obter o financiamento, optamos pela admissão temporária de um equipamento valvular, da Segunda Guerra. Usamos o artifício da admissão temporária porque a lei impedia a importação de equipamentos usados. Quando as antenas novas ficaram prontas, as velhas voltaram como sucata para os EUA.
Folha - Ferreira diz que, apesar de sua obsessão por qualidade, foram os militares que impuseram o Padrão Globo de Qualidade.
Boni -
Isso não tem o menor fundamento. É uma visão parcial do Paulo Cesar, uma vez que ele não teve envolvimento com a área artística. A TV brasileira sempre teve seus padrões de qualidade ditados por problemas de ordem econômica. Quando se implantou a TV no Brasil, e só havia televisores na classe A, a TV brasileira era de ótima qualidade. Sempre que as classes mais baixas têm acesso à TV -acontece isso de novo, aconteceu no milagre econômico-, há uma tendência de a audiência ser endereçada a esse público.
Nos anos 70, a censura era extremamente rígida. As emissoras de TV tiveram de encontrar um artifício para não serem punidas, o artifício da imediaticidade. Isso está escrito na lei. Quando um programa é transmitido ao vivo, caracteriza-se a imediaticidade.
Nos programas de auditório, os próprios apresentadores seriam punidos, não a emissora, por algum excesso. Essa lei teve um efeito duplo. Quando você cobrava a questão da qualidade de um apresentador como o Chacrinha ou Flávio Cavalcanti, ele dizia: "Não, deixa que a responsabilidade é minha. Se cometer um excesso, eu serei punido". Ganhamos uma boa desculpa para a censura, mas perdemos um pouco a qualidade.
Folha - Mas por que os militares ficaram irados?
Boni -
Numa guerra entre Chacrinha e Flávio Cavalcanti, o Flávio anunciou que levaria um sujeito muito popular, Seu Sete da Lira, que fazia milagres, curava todo mundo. O Chacrinha correu e trouxe o Sete da Lira antes. Na semana seguinte, o Flávio Cavalcanti levou o Seu Sete da Lira e, não era estilo de Flávio, acabou tomando um pileque de cachaça no ar, junto com Seu Sete da Lira.
Folha - Mas houve intervenção dos militares?
Boni -
Houve. A partir desse episódio a responsabilidade deixou de ser do apresentador e passou a ser das emissoras. E não houve pressão nenhuma para fazermos programas de qualidade. Houve pressão para que os programas ao vivo passassem para a responsabilidade das emissoras. Isso só atingiu os programas de auditório. Fomos obrigados a reduzir os programas ao vivo e aumentar os de videotape. Houve também pressão do ministro das Comunicações, Hygino Corsetti, para que a televisão se tornasse colorida. Isso era importante para a revolução, era sinal de progresso.
Folha - Ferreira diz no livro que Corsetti fez a seguinte exigência: "A TV precisa educar o povo".
Boni -
Eu participei dessa reunião e esse episódio não ocorreu. O Paulo César não estava na reunião. Estávamos eu, o Walter Clark (diretor da Globo), o João Saad (TV Bandeirantes), o Edmundo Monteiro (TV Tupi). A qualidade a que os militares se referiam era qualidade técnica. Eles queriam absolutamente TV em cores, queriam que inaugurássemos na Festa da Uva em Caxias porque a filha do ministro ia desfilar, comemorando o aniversário da revolução.
Folha - A Globo não queria a cor?
Boni - Não. Nós estávamos saindo do prejuízo e com as cores teríamos de investir. Os militares forçaram a barra. Havia uma posição minha e do Walter (Clark) de que a implantação seria prematura, que seria uma coisa falsa porque não havia aparelhos para receber as cores e nem equipamento para produzir em cores.
Folha - É verdade que os militares ameaçaram intervir na Globo se continuasse a apelação?
Boni -
Não. Eles já eram interventores. As novelas eram cortadas. Eu passei um dia no videotape com a novela "O Bem Amado" e tirei 92 vezes a palavra coronel porque foi proibida. Era coronel no sentido nordestino, de "coroné", não tinha nada de militar. Folha - Os militares ficavam na Globo?
Boni -
Não. Era um censor civil. Quem nomeava o diretor da censura eram os militares e eles faziam pressão sobre esse diretor. Não havia preocupação com qualidade porque eles não tinham critérios. Proibiam o que não convinha, não o que era ruim. O Paulo Cesar pode ter feito essa confusão, apesar de o livro dele ser bem interessante. Eles proibiam o Seu Sete da Lira por razões morais, não porque era mal feito. Nunca existiu por parte dos militares a preocupação de fazer uma TV de qualidade. Foi uma preocupação dos profissionais.
Folha - Os militares frequentavam a Globo?
Boni -
Não, nós é que íamos a eles. Íamos para perguntar por que ele cortou uma notícia, até onde eu posso ir. Eu fazia isso na parte das novelas. Quem fazia isso com notícias era o Edgardo Erichsen. O Walter (Clark) achava que ele era uma pessoa da TV Globo que estava nos representando junto aos militares. Eu o via como um representante dos militares na Globo.
Folha - Programas como o do Amaral Neto era decididos pela Globo ou impostos pelo governo?
Boni -
Eram impostos. Era uma negociação com os militares. Deixa eu fazer tal novela, libera um pouco mais o "Jornal Nacional". Os militares diziam: "Tudo bem se vocês fizerem um programa que mostre as boas coisas do Brasil". Foi o Edgardo que negociou e eu recebi ordens de colocar no ar. Tive um atrito muito grande com o Amaral Neto, quase físico, mas depois descobri que ele era uma excelente pessoa que estava fazendo uma coisa que acreditava.
Tivemos que engolir o Amaral Neto. Trabalhei muito no programa para poder engolir aquilo, para transformá-lo em aventura.



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