São Paulo, sexta-feira, 18 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O baile da Ilha Fiscal e o arraial do Torto

Como qualquer autor em atividade no complicado ofício das letras, volta e meia me perguntam por que escrevo sobre isso e aquilo e evito escrever sobre isso e aquilo. Como escriba diário, gasto meu tempo e a paciência dos outros reduzindo o que posso ao plano pessoal. Se fosse escrever o que me sugerem, teria de me limitar a um único mister, distribuindo pauladas, justas ou injustas, não importa. Aliás, sou a favor do pau para dirimir grandes contendas e impasses. Mas gosto também de outras coisas.
Já sugeri que se colocasse um pau na mão de Bush e de Bin Laden e que os dois, no centro do Madison Square Garden, decidissem quem era do Bem ou do Mal. E, para solucionar a transcendente questão de quem manda mais no governo, daríamos um cacete ao Zé Dirceu e outro ao Aldo Rebelo, que os dois resolvessem a questão e ficássemos sabendo quem está fritando quem.
No momento em que escrevo, o pau come feio em vários departamentos da vida pública, nos presídios, nos bancos de sangue, nas remessas para o exterior e até mesmo na briga do governo com a oposição para aumentar um mínimo no salário mínimo. Como no boxe, venceria o melhor (ou o mais forte) -o que é quase a mesma coisa na projeção da história.
Em jornal ou revista, apelar para o pau pode não ser original, mas é prático. Quando Eça de Queiroz não tinha assunto, metia o pau no Bei de Túnis, atribuindo-lhe façanhas, inclusive a de existir, pois o personagem praticamente era invenção sua. De certa forma, Eça provou que a falta de assunto é sempre um bom assunto.
O argumento mais comum que recebo quando elogio a falta de assunto é tão banal como o excesso de assuntos. Vampiros, festa caipira, o despertar do cinema nacional, os 60 anos de Chico Buarque, a corrupção policial, os males da droga e os benefícios da alimentação saudável sem carnes vermelhas e sem excesso de calorias, para onde se vá ou para onde se olha, pode faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, pode faltar dinheiro e tudo o mais não faz falta não, pode faltar mulher, e disso até acho graça, só não pode faltar a danada da cachaça -não necessariamente nessa ordem, era assim que uma antiga marchinha de Carnaval, gravada pelo Colé, elencava assuntos que nunca faltaram.
(Abro um parênteses gráfico e literário para o verbo "elencar", muito usado no sentido de escolher, mencionar, priorizar. Tal como o verbo "alavancar", é de uso privativo de economistas e cientistas sociais.)
Bem, entrando realmente num assunto, que é a falta de assunto, deu-se que descobri, numa antiga antologia escolar, um comentário feroz, e ia dizer furibundo, sobre o baile da Ilha Fiscal, que foi a última festa do nosso Segundo Império. O articulista, mesmo sem saber que a república seria proclamada dias depois, baixou o pau na festança da elite imperial, prevendo chuvas e trovoadas na meteorologia política da época. Entre outras coisas judiciosas, o suntuoso baile foi considerado um "sinal dos tempos".
Por incrível que pareça, o som e a fúria daquela espinafração na corte mais alta do império eram os mesmos que andei lendo por aí a respeito da festa caipira, bem mais modesta, por sinal, montada na Granja do Torto pela atual elite dirigente do país.
Longe de mim agourar um repeteco da proclamação de uma nova república após os excessos juninos do quentão e das sensatas palavras do Frei Betto, casando quem já estava casado há 30 anos. Pelo contrário, louvo e saúdo com cívico entusiasmo o arraial do governo, governo que costumo criticar com motivos ou sem eles, achando que, tal como a mulher daquele árabe da anedota, o marido não sabe por que está sovando a consorte, mas a consorte sabe por que está sendo sovada.
Uma amiga me telefonou, indignada, reclamando do visual apresentado pela dupla Lula-Marisa, embora reconhecendo que "eles faziam o gênero". Onde se viu um chefe da nação, comandante supremo das Forças Armadas, com chapéu de palha e roupas esfiapadas? Só não apelou para o bigode e barba feitos à base de rolha queimada porque já dispõe desse arsenal cenográfico na vida diária e há bastante tempo.
Discordei da minha amiga. Entre as boas coisas promovidas pelo atual governo, apreciei a homenagem aos santos de junho, santos festeiros e assanhados, dos quais sou devoto urbano e permanente. A foto de Lula a caráter, levando o estandarte com são João em sua imagem mais popular, certamente está sendo recortada dos jornais e revistas, emoldurada e colocada na parede mais nobre dos lares daqueles que são simples e humildes de coração.
Bem melhor do que a foto empostada que infesta repartições e espaços oficiais com um presidente atochado por uma faixa bicolor que ficaria bem numa miss, num cavaleiro da Ordem Eqüestre de São Silvestre, num Duque de Luxemburgo de opereta.
Desde que não me convidem para a festa do ano que vem, acho que o evento caipira do governo deve ser institucionalizado, fazendo parte de nosso calendário cívico. Ao contrário do baile da Ilha Fiscal, que nunca mais se repetiu, o arraial do Torto deve acontecer todos os anos e, querendo Deus, acontecendo todos os dias. Não salva a nação, mas a diverte e consola.


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