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CARLOS HEITOR CONY
O baile da Ilha Fiscal e o arraial do Torto
Como qualquer autor em
atividade no complicado ofício das letras, volta e meia me
perguntam por que escrevo sobre
isso e aquilo e evito escrever sobre
isso e aquilo. Como escriba diário,
gasto meu tempo e a paciência
dos outros reduzindo o que posso
ao plano pessoal. Se fosse escrever
o que me sugerem, teria de me limitar a um único mister, distribuindo pauladas, justas ou injustas, não importa. Aliás, sou a favor do pau para dirimir grandes
contendas e impasses. Mas gosto
também de outras coisas.
Já sugeri que se colocasse um
pau na mão de Bush e de Bin Laden e que os dois, no centro do
Madison Square Garden, decidissem quem era do Bem ou do Mal.
E, para solucionar a transcendente questão de quem manda mais
no governo, daríamos um cacete
ao Zé Dirceu e outro ao Aldo Rebelo, que os dois resolvessem a
questão e ficássemos sabendo
quem está fritando quem.
No momento em que escrevo, o
pau come feio em vários departamentos da vida pública, nos presídios, nos bancos de sangue, nas
remessas para o exterior e até
mesmo na briga do governo com
a oposição para aumentar um
mínimo no salário mínimo. Como no boxe, venceria o melhor
(ou o mais forte) -o que é quase
a mesma coisa na projeção da
história.
Em jornal ou revista, apelar para o pau pode não ser original,
mas é prático. Quando Eça de
Queiroz não tinha assunto, metia
o pau no Bei de Túnis, atribuindo-lhe façanhas, inclusive a de
existir, pois o personagem praticamente era invenção sua. De
certa forma, Eça provou que a falta de assunto é sempre um bom
assunto.
O argumento mais comum que
recebo quando elogio a falta de
assunto é tão banal como o excesso de assuntos. Vampiros, festa
caipira, o despertar do cinema
nacional, os 60 anos de Chico
Buarque, a corrupção policial, os
males da droga e os benefícios da
alimentação saudável sem carnes
vermelhas e sem excesso de calorias, para onde se vá ou para onde se olha, pode faltar tudo na vida, arroz, feijão e pão, pode faltar
dinheiro e tudo o mais não faz
falta não, pode faltar mulher, e
disso até acho graça, só não pode
faltar a danada da cachaça
-não necessariamente nessa ordem, era assim que uma antiga
marchinha de Carnaval, gravada
pelo Colé, elencava assuntos que
nunca faltaram.
(Abro um parênteses gráfico e
literário para o verbo "elencar",
muito usado no sentido de escolher, mencionar, priorizar. Tal como o verbo "alavancar", é de uso
privativo de economistas e cientistas sociais.)
Bem, entrando realmente num
assunto, que é a falta de assunto,
deu-se que descobri, numa antiga
antologia escolar, um comentário
feroz, e ia dizer furibundo, sobre o
baile da Ilha Fiscal, que foi a última festa do nosso Segundo Império. O articulista, mesmo sem saber que a república seria proclamada dias depois, baixou o pau
na festança da elite imperial, prevendo chuvas e trovoadas na meteorologia política da época. Entre outras coisas judiciosas, o suntuoso baile foi considerado um
"sinal dos tempos".
Por incrível que pareça, o som e
a fúria daquela espinafração na
corte mais alta do império eram
os mesmos que andei lendo por aí
a respeito da festa caipira, bem
mais modesta, por sinal, montada na Granja do Torto pela atual
elite dirigente do país.
Longe de mim agourar um repeteco da proclamação de uma
nova república após os excessos
juninos do quentão e das sensatas
palavras do Frei Betto, casando
quem já estava casado há 30
anos. Pelo contrário, louvo e saúdo com cívico entusiasmo o arraial do governo, governo que
costumo criticar com motivos ou
sem eles, achando que, tal como a
mulher daquele árabe da anedota, o marido não sabe por que está sovando a consorte, mas a consorte sabe por que está sendo sovada.
Uma amiga me telefonou, indignada, reclamando do visual
apresentado pela dupla Lula-Marisa, embora reconhecendo que
"eles faziam o gênero". Onde se
viu um chefe da nação, comandante supremo das Forças Armadas, com chapéu de palha e roupas esfiapadas? Só não apelou para o bigode e barba feitos à base
de rolha queimada porque já dispõe desse arsenal cenográfico na
vida diária e há bastante tempo.
Discordei da minha amiga. Entre as boas coisas promovidas pelo atual governo, apreciei a homenagem aos santos de junho, santos festeiros e assanhados, dos
quais sou devoto urbano e permanente. A foto de Lula a caráter, levando o estandarte com são
João em sua imagem mais popular, certamente está sendo recortada dos jornais e revistas, emoldurada e colocada na parede
mais nobre dos lares daqueles que
são simples e humildes de coração.
Bem melhor do que a foto empostada que infesta repartições e
espaços oficiais com um presidente atochado por uma faixa bicolor
que ficaria bem numa miss, num
cavaleiro da Ordem Eqüestre de
São Silvestre, num Duque de Luxemburgo de opereta.
Desde que não me convidem
para a festa do ano que vem, acho
que o evento caipira do governo
deve ser institucionalizado, fazendo parte de nosso calendário
cívico. Ao contrário do baile da
Ilha Fiscal, que nunca mais se repetiu, o arraial do Torto deve
acontecer todos os anos e, querendo Deus, acontecendo todos os
dias. Não salva a nação, mas a diverte e consola.
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