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RODAPÉ
As doenças secretas da linguagem
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"As estruturas não descem à
rua." A frase escrita por estudantes numa lousa da Sorbonne, durante as insurreições de
maio de 68, sempre é citada quando se quer apontar as insuficiências do estruturalismo em matéria
de política. O psicanalista Jacques
Lacan, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o filósofo Michel Foucault
-qualquer desses pensadores poderia ter sido alvo do deboche estudantil.
Em comum entre eles, havia a
tentativa de identificar as estruturas elementares das relações sociais, deixando pouca margem para o voluntarismo ideológico e para a ação do sujeito -visto menos
como agente da história do que
como efeito da linguagem, das trocas simbólicas que fundam a cultura ou das "epistemes" que determinam formas de apreensão da
realidade.
Entretanto, aquela frase, espécie
de coquetel molotov do anarquismo "light", teve como principal
destinatário Roland Barthes (1915-1980), justamente o semiólogo e
crítico literário que afirmava ter se
tornado escritor sob o impacto da
leitura de Sartre e Brecht (dois ícones da literatura "engajada").
Existe portanto um descompasso entre as exigências retóricas do
espírito de 68, embaladas pelo
bordão "a imaginação no poder",
e a sofisticada máquina criada por
Roland Barthes para triturar as
"doenças secretas da linguagem".
Daí a importância de "Política",
quarto volume dos "Inéditos" de
Barthes, que a editora Martins
Fontes vem lançando sob coordenação da ensaísta Leyla Perrone-Moisés.
O livro compreende diferentes
etapas de uma obra que buscou na
literatura uma "relação de questionamento com as outras linguagens da sociedade reificada". São
textos de intervenção e entrevistas.
Numa delas, Barthes declara
que, à parte "O Grau Zero da Escrita", só escrevia "para responder
à incitação de alguém", afirmação
que dá a medida da "vertigem"
provocada pela "contradição que
se estabelece entre a pressão das
demandas, que provoca a ilusão
de vitalidade, como se você fosse
alguém "necessário", e a gratuidade
da prática da escrita, de que nos
anteparamos, como diria Lacan,
repetindo que a escrita é uma tarefa política, contra-ideológica etc.,
um trabalho demandado pela História".
Mais do que simples depoimento sobre um método de trabalho,
Barthes apresenta aqui uma ética
da escrita em que chama a atenção
o emprego de um léxico sartriano
("gratuidade", "necessidade"),
nuançando oposições grosseiras
entre existencialistas e estruturalistas.
Escrevendo sobre a Guerra da
Argélia, respondendo a enquetes
ou analisando a edição francesa de
"Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, Roland Barthes
mantém como fio condutor a idéia
de que o engajamento literário
não se confunde com a atitude
participativa do intelectual -atitude que ele defende, embora tenha sido menos um espírito revolucionário do que um temperamento afeito à tarefa subversiva de
"desmontar os mecanismos autoritários da língua" (como assinala
Leyla Perrone-Moisés).
Ou seja, existe para Barthes um
"engajamento da forma", a despeito das posições do autor empírico (que bem pode ser um reacionário, como Balzac ou Céline). Por
isso, surpreende-nos ver, na polêmica que manteve com Camus,
um Barthes alinhado à ortodoxia
marxista.
De todo modo, predomina em
"Política" o espírito das suas "Mitologias", daqueles textos deliciosos em que Barthes mostra que a
contribuição dos intelectuais para
transformar o mundo está na corrosão das idéias feitas. "Nunca se
pode destruir a linguagem, ou então não falaremos mais", diz ele
numa entrevista; a saída é uma "filosofia ou moral da trapaça", que
se apropria das entranhas da expressão, sendo muito mais eficaz
do que o triunfalismo (afinal ilusório) das vanguardas estéticas e
políticas.
Por fim, uma correção: na última coluna "Rodapé", sobre o livro
"Duas Vezes Junho", de Martín
Kohan, fiz referência à noção de
"banalidade do mal", de Hannah
Arendt; mas, por erro de digitação
(ou ato falho), grafei "banalidade
do banal".
Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço
Inéditos Vol. 4 - Política
Autor: Roland Barthes
Tradução: Ivone C. Benedetti
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 37,50 (222 págs.)
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