São Paulo, sábado, 18 de junho de 2005

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RODAPÉ

As doenças secretas da linguagem

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"As estruturas não descem à rua." A frase escrita por estudantes numa lousa da Sorbonne, durante as insurreições de maio de 68, sempre é citada quando se quer apontar as insuficiências do estruturalismo em matéria de política. O psicanalista Jacques Lacan, o antropólogo Claude Lévi-Strauss, o filósofo Michel Foucault -qualquer desses pensadores poderia ter sido alvo do deboche estudantil.
Em comum entre eles, havia a tentativa de identificar as estruturas elementares das relações sociais, deixando pouca margem para o voluntarismo ideológico e para a ação do sujeito -visto menos como agente da história do que como efeito da linguagem, das trocas simbólicas que fundam a cultura ou das "epistemes" que determinam formas de apreensão da realidade.
Entretanto, aquela frase, espécie de coquetel molotov do anarquismo "light", teve como principal destinatário Roland Barthes (1915-1980), justamente o semiólogo e crítico literário que afirmava ter se tornado escritor sob o impacto da leitura de Sartre e Brecht (dois ícones da literatura "engajada").
Existe portanto um descompasso entre as exigências retóricas do espírito de 68, embaladas pelo bordão "a imaginação no poder", e a sofisticada máquina criada por Roland Barthes para triturar as "doenças secretas da linguagem". Daí a importância de "Política", quarto volume dos "Inéditos" de Barthes, que a editora Martins Fontes vem lançando sob coordenação da ensaísta Leyla Perrone-Moisés.
O livro compreende diferentes etapas de uma obra que buscou na literatura uma "relação de questionamento com as outras linguagens da sociedade reificada". São textos de intervenção e entrevistas.
Numa delas, Barthes declara que, à parte "O Grau Zero da Escrita", só escrevia "para responder à incitação de alguém", afirmação que dá a medida da "vertigem" provocada pela "contradição que se estabelece entre a pressão das demandas, que provoca a ilusão de vitalidade, como se você fosse alguém "necessário", e a gratuidade da prática da escrita, de que nos anteparamos, como diria Lacan, repetindo que a escrita é uma tarefa política, contra-ideológica etc., um trabalho demandado pela História".
Mais do que simples depoimento sobre um método de trabalho, Barthes apresenta aqui uma ética da escrita em que chama a atenção o emprego de um léxico sartriano ("gratuidade", "necessidade"), nuançando oposições grosseiras entre existencialistas e estruturalistas.
Escrevendo sobre a Guerra da Argélia, respondendo a enquetes ou analisando a edição francesa de "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre, Roland Barthes mantém como fio condutor a idéia de que o engajamento literário não se confunde com a atitude participativa do intelectual -atitude que ele defende, embora tenha sido menos um espírito revolucionário do que um temperamento afeito à tarefa subversiva de "desmontar os mecanismos autoritários da língua" (como assinala Leyla Perrone-Moisés).
Ou seja, existe para Barthes um "engajamento da forma", a despeito das posições do autor empírico (que bem pode ser um reacionário, como Balzac ou Céline). Por isso, surpreende-nos ver, na polêmica que manteve com Camus, um Barthes alinhado à ortodoxia marxista.
De todo modo, predomina em "Política" o espírito das suas "Mitologias", daqueles textos deliciosos em que Barthes mostra que a contribuição dos intelectuais para transformar o mundo está na corrosão das idéias feitas. "Nunca se pode destruir a linguagem, ou então não falaremos mais", diz ele numa entrevista; a saída é uma "filosofia ou moral da trapaça", que se apropria das entranhas da expressão, sendo muito mais eficaz do que o triunfalismo (afinal ilusório) das vanguardas estéticas e políticas.
Por fim, uma correção: na última coluna "Rodapé", sobre o livro "Duas Vezes Junho", de Martín Kohan, fiz referência à noção de "banalidade do mal", de Hannah Arendt; mas, por erro de digitação (ou ato falho), grafei "banalidade do banal".


Manuel da Costa Pinto escreve quinzenalmente neste espaço

Inéditos Vol. 4 - Política
    
Autor: Roland Barthes
Tradução: Ivone C. Benedetti
Editora: Martins Fontes
Quanto: R$ 37,50 (222 págs.)


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