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NELSON ASCHER
Você já ouviu a última?
Desacreditado, senso de humor ainda é um bom conceito para definir caráter nacional
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POR MAIS desacreditado que esteja este conceito, nada encapsula tão bem o caráter nacional dos povos quanto o senso de
humor de cada qual -ou sua falta.
Pode-se, assim, dividir o mundo em
duas categorias de nações, a saber,
aquelas que são capazes de zombar
de si mesmas, e aquelas avessas a
qualquer autocrítica zombeteira.
Uma semana na Holanda bastou-me, certa feita, para descobrir que,
não obstante sua fleuma britânica (a
maioria da população não apenas fala inglês como o faz melhor do que
muitos súditos da rainha), os holandeses contemplam seu país e conterrâneos com uma mescla de simpatia e distanciamento crítico. Embora seja difícil crer que os quatro
pontos cardeais caibam num território tão exíguo, os habitantes do
norte são vistos como avarentos e os
do sul, como não muito espertos,
praticamente belgas. Nem por isso
delineia-se uma guerra civil no horizonte, e uma piada corriqueira é a
seguinte: quem criou o fio de cobre?
Dois holandeses brigando por uma
moeda de um centavo.
Um povo que, devido ao modo como tem sido estereotipado no estrangeiro, pareceria alérgico a se caricaturar seria justamente o inglês.
Nada mais falso e, como a longa linhagem de satiristas de sua literatura comprova, zombar de si mesmos
é um esporte que os ingleses praticam com um prazer superado somente pelo de contar piadas sobre
escoceses e irlandeses (retratados
respectivamente como sovinas e retardados). Não é à toa, portanto, que
o grupo Monty Python surgiu naquele arquipélago chuvoso enquanto este agüentava estoicamente e
sem perder a classe (exceto diante
dos americanos) seu rebaixamento
a potência de segunda classe.
Uma conclusão possível do caso
inglês é a de que a capacidade de se
auto-ironizar se relaciona, quando
se trata de países, a uma auto-imagem positiva e consolidada. Nações
pequenas, cercadas por predadores,
gostam, é claro, de se retratar como
vítimas, e dirigem suas melhores
farpas aos vizinhos. Onde a união
nacional é recente ou frágil, como na
Itália ou na Espanha, são as partes
integrantes que zombam umas das
outras: a Lombardia industrializada
versus o sul pobre, ou catalães versus andaluzes versus castelhanos.
Trocando em miúdos, alguma familiaridade com a história e situação de tal ou qual povo permite inferir, com razoável segurança, seus tipos favoritos de humor. A principal
exceção que conheço é a França. Sua
opulência antiga e atual, sua posição
no mundo, que já foi melhor, mas
não é ruim, a influência e prestígio
de sua língua e cultura, tudo sugeriria que a pátria de Voltaire e Diderot
se permitiria a auto-ironia. Qual nada: nem sombra de Monty Python
francês. (Asterix, decerto atípico, é
antes humor de resistência, de
quando o país estava por baixo.)
Durante os três anos que vivi na
França não ouvi uma única piada,
nem sequer uma chacota, feita por
um francês a respeito da França. Satirizar os belgas e, sobretudo, os
americanos: tudo bem. Mas ser satirizada é visto pela França e pelos
franceses como um crime de lesa-majestade. Poucos anos atrás houve,
nos EUA, uma voga de anedotas que
caçoavam dos insucessos militares
franceses, em especial a rapidez com
que os alemães derrotaram a França
na Segunda Guerra. Essa onda foi
suficiente para mobilizar o Quai
d'Orsay, que protestou junto à administração americana, à imprensa
e às redes de TV, conseguindo o resultado oposto do que buscava.
E o Brasil? Aparentemente, nosso
humor mais singular e característico é o negro. Em quantos outros lugares tragédias como os desastres
com os vôos da TAM e da Gol ou a
morte de celebridades como Ulysses
Guimarães, Ayrton Senna, Daniela
Perez e os Mamonas Assassinas gerariam, imediatamente, piadas tão
pesadas quanto as que ouvimos por
aqui? As que foram contadas depois
desses eventos teriam sido consideradas de mau gosto ou politicamente incorretas em todo o restante do
planeta.
Quanto à nossa auto-ironia, ela é
no mínimo paradoxal. Em outras
terras, uma de suas funções é a de limitar a megalomania, podar os excessos de um patriotismo justificado, domar os aspectos mais agressivos do nacionalismo. Os brasileiros,
porém, não se destacam nem como
megalômanos, patriotas nem como
nacionalistas. Se, por um lado, pode
ter sido o próprio humor autodepreciativo que, chegando antes, impediu o Brasil de aderir aos piores vícios nacionais europeus, tampouco
deixa de ser verdade que, entre nós,
o humor é, não raro, seu exato contrário: uma forma tradicional de lamentarmos e perpetuarmos nosso
estado.
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