São Paulo, segunda-feira, 18 de junho de 2007

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NELSON ASCHER

Você já ouviu a última?


Desacreditado, senso de humor ainda é um bom conceito para definir caráter nacional

POR MAIS desacreditado que esteja este conceito, nada encapsula tão bem o caráter nacional dos povos quanto o senso de humor de cada qual -ou sua falta. Pode-se, assim, dividir o mundo em duas categorias de nações, a saber, aquelas que são capazes de zombar de si mesmas, e aquelas avessas a qualquer autocrítica zombeteira.
Uma semana na Holanda bastou-me, certa feita, para descobrir que, não obstante sua fleuma britânica (a maioria da população não apenas fala inglês como o faz melhor do que muitos súditos da rainha), os holandeses contemplam seu país e conterrâneos com uma mescla de simpatia e distanciamento crítico. Embora seja difícil crer que os quatro pontos cardeais caibam num território tão exíguo, os habitantes do norte são vistos como avarentos e os do sul, como não muito espertos, praticamente belgas. Nem por isso delineia-se uma guerra civil no horizonte, e uma piada corriqueira é a seguinte: quem criou o fio de cobre? Dois holandeses brigando por uma moeda de um centavo.
Um povo que, devido ao modo como tem sido estereotipado no estrangeiro, pareceria alérgico a se caricaturar seria justamente o inglês. Nada mais falso e, como a longa linhagem de satiristas de sua literatura comprova, zombar de si mesmos é um esporte que os ingleses praticam com um prazer superado somente pelo de contar piadas sobre escoceses e irlandeses (retratados respectivamente como sovinas e retardados). Não é à toa, portanto, que o grupo Monty Python surgiu naquele arquipélago chuvoso enquanto este agüentava estoicamente e sem perder a classe (exceto diante dos americanos) seu rebaixamento a potência de segunda classe.
Uma conclusão possível do caso inglês é a de que a capacidade de se auto-ironizar se relaciona, quando se trata de países, a uma auto-imagem positiva e consolidada. Nações pequenas, cercadas por predadores, gostam, é claro, de se retratar como vítimas, e dirigem suas melhores farpas aos vizinhos. Onde a união nacional é recente ou frágil, como na Itália ou na Espanha, são as partes integrantes que zombam umas das outras: a Lombardia industrializada versus o sul pobre, ou catalães versus andaluzes versus castelhanos.
Trocando em miúdos, alguma familiaridade com a história e situação de tal ou qual povo permite inferir, com razoável segurança, seus tipos favoritos de humor. A principal exceção que conheço é a França. Sua opulência antiga e atual, sua posição no mundo, que já foi melhor, mas não é ruim, a influência e prestígio de sua língua e cultura, tudo sugeriria que a pátria de Voltaire e Diderot se permitiria a auto-ironia. Qual nada: nem sombra de Monty Python francês. (Asterix, decerto atípico, é antes humor de resistência, de quando o país estava por baixo.)
Durante os três anos que vivi na França não ouvi uma única piada, nem sequer uma chacota, feita por um francês a respeito da França. Satirizar os belgas e, sobretudo, os americanos: tudo bem. Mas ser satirizada é visto pela França e pelos franceses como um crime de lesa-majestade. Poucos anos atrás houve, nos EUA, uma voga de anedotas que caçoavam dos insucessos militares franceses, em especial a rapidez com que os alemães derrotaram a França na Segunda Guerra. Essa onda foi suficiente para mobilizar o Quai d'Orsay, que protestou junto à administração americana, à imprensa e às redes de TV, conseguindo o resultado oposto do que buscava.
E o Brasil? Aparentemente, nosso humor mais singular e característico é o negro. Em quantos outros lugares tragédias como os desastres com os vôos da TAM e da Gol ou a morte de celebridades como Ulysses Guimarães, Ayrton Senna, Daniela Perez e os Mamonas Assassinas gerariam, imediatamente, piadas tão pesadas quanto as que ouvimos por aqui? As que foram contadas depois desses eventos teriam sido consideradas de mau gosto ou politicamente incorretas em todo o restante do planeta.
Quanto à nossa auto-ironia, ela é no mínimo paradoxal. Em outras terras, uma de suas funções é a de limitar a megalomania, podar os excessos de um patriotismo justificado, domar os aspectos mais agressivos do nacionalismo. Os brasileiros, porém, não se destacam nem como megalômanos, patriotas nem como nacionalistas. Se, por um lado, pode ter sido o próprio humor autodepreciativo que, chegando antes, impediu o Brasil de aderir aos piores vícios nacionais europeus, tampouco deixa de ser verdade que, entre nós, o humor é, não raro, seu exato contrário: uma forma tradicional de lamentarmos e perpetuarmos nosso estado.


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