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MEMÓRIA
"Samba-enredo só dá ilusão no Carnaval"
ANTONIO CARLOS DE FARIA
DA SUCURSAL DO RIO
Nos últimos tempos, Neuma
andava com saudades da boemia
no Buraco Quente, largo no morro da Mangueira onde cantaram
Assis Valente, Almirante, Cartola,
Noel Rosa, Nelson Cavaquinho,
entre outros mitos do samba.
O lugar fica a cerca de cem metros da quadra da escola de samba, subindo uma ladeira em leve
aclive. Mas ela já não ia mais para
lá. Não por causa da idade, mas
sim por causa do tráfico.
"Agora, há a lei do gatilho. A
gente mal começa a andar pelo
morro e os homens perguntam se
estamos procurando do preto ou
do branco", dizia Neuma, fazendo referência aos traficantes que
ofertam maconha ou cocaína.
O tráfico impôs às favelas cariocas restrições de horários, limitando a vida de seus moradores.
Sem as rodas de samba nos botequins, vem se quebrando o elo entre as antigas e novas gerações,
impedindo que haja continuidade
na transmissão das regras da arte.
"Sobrou o samba na quadra da
escola. Mas ali quase só tem samba-enredo, feito para concursos.
Samba-enredo não dá camisa para os sambistas, só ilusão no Carnaval", criticava Neuma, com sua
habitual franqueza, que às vezes
era carregada de palavrões.
"Adoro falar palavrões, mas não
gosto de ouvir, só de ler", dizia
sorrindo, lembrando de um livro
de poemas que ganhou de Carlos
Drummond de Andrade, em um
dia em que estava ao lado do mestre-sala Delegado, um dos mais
célebres da Mangueira.
"Logo de cara li uma poesia que
falava do clitóris. Aí eu perguntei
para o Delegado se ele sabia o que
era aquela palavra. Ele disse que
não. Eu expliquei que era a mesma coisa que grelo. O Delegado
nunca mais esqueceu."
Ela, que era filha de Saturnino
Gonçalves, um dos fundadores da
escola, sempre foi uma referência
da Mangueira, mesmo nos anos
em que a Estação Primeira andou
nas sombras. Durante os anos 40
e começo dos 50, a escola ficou
obscurecida pelos desfiles campeões da Portela e da Império Serrano. Esse período coincidiu com
o ostracismo de Cartola que, depois de ter conhecido o sucesso
nos anos 30, só voltou a ser "redescoberto" em 1963.
Nessa época, o entusiasmo de
Neuma e de outros mangueirenses históricos, como Geraldo Pereira, Carlos Cachaça e Nelson
Sargento, manteve vivo o espírito
criativo da escola, propiciando o
ambiente no qual surgiram alguns dos clássicos dos sambas.
Dizia que nunca esqueceu o
exemplo de Noel Rosa. "Apesar
de frágil, ele sempre tinha o que
dar. Outros vieram para a Mangueira só para buscar nossos sambas. Ele vinha também para trazer
os dele. No final, o morro e Noel
fizeram parceria."
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