São Paulo, terça-feira, 18 de julho de 2000


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MEMÓRIA
"Samba-enredo só dá ilusão no Carnaval"

ANTONIO CARLOS DE FARIA
DA SUCURSAL DO RIO

Nos últimos tempos, Neuma andava com saudades da boemia no Buraco Quente, largo no morro da Mangueira onde cantaram Assis Valente, Almirante, Cartola, Noel Rosa, Nelson Cavaquinho, entre outros mitos do samba.
O lugar fica a cerca de cem metros da quadra da escola de samba, subindo uma ladeira em leve aclive. Mas ela já não ia mais para lá. Não por causa da idade, mas sim por causa do tráfico.
"Agora, há a lei do gatilho. A gente mal começa a andar pelo morro e os homens perguntam se estamos procurando do preto ou do branco", dizia Neuma, fazendo referência aos traficantes que ofertam maconha ou cocaína.
O tráfico impôs às favelas cariocas restrições de horários, limitando a vida de seus moradores. Sem as rodas de samba nos botequins, vem se quebrando o elo entre as antigas e novas gerações, impedindo que haja continuidade na transmissão das regras da arte.
"Sobrou o samba na quadra da escola. Mas ali quase só tem samba-enredo, feito para concursos. Samba-enredo não dá camisa para os sambistas, só ilusão no Carnaval", criticava Neuma, com sua habitual franqueza, que às vezes era carregada de palavrões.
"Adoro falar palavrões, mas não gosto de ouvir, só de ler", dizia sorrindo, lembrando de um livro de poemas que ganhou de Carlos Drummond de Andrade, em um dia em que estava ao lado do mestre-sala Delegado, um dos mais célebres da Mangueira.
"Logo de cara li uma poesia que falava do clitóris. Aí eu perguntei para o Delegado se ele sabia o que era aquela palavra. Ele disse que não. Eu expliquei que era a mesma coisa que grelo. O Delegado nunca mais esqueceu."
Ela, que era filha de Saturnino Gonçalves, um dos fundadores da escola, sempre foi uma referência da Mangueira, mesmo nos anos em que a Estação Primeira andou nas sombras. Durante os anos 40 e começo dos 50, a escola ficou obscurecida pelos desfiles campeões da Portela e da Império Serrano. Esse período coincidiu com o ostracismo de Cartola que, depois de ter conhecido o sucesso nos anos 30, só voltou a ser "redescoberto" em 1963.
Nessa época, o entusiasmo de Neuma e de outros mangueirenses históricos, como Geraldo Pereira, Carlos Cachaça e Nelson Sargento, manteve vivo o espírito criativo da escola, propiciando o ambiente no qual surgiram alguns dos clássicos dos sambas.
Dizia que nunca esqueceu o exemplo de Noel Rosa. "Apesar de frágil, ele sempre tinha o que dar. Outros vieram para a Mangueira só para buscar nossos sambas. Ele vinha também para trazer os dele. No final, o morro e Noel fizeram parceria."


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