São Paulo, domingo, 18 de julho de 2004

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CRÍTICA

Humor na contramão da propaganda

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

A Sony vem exibindo nas noites de segunda-feira duas excelentes séries cômicas, que estão totalmente na contramão da propaganda dos modos de vida norte-americanos, matéria-prima de 90% dos seriados. "Whoopi" e "Becker", ambas já canceladas nos EUA, são uma espécie de lado avesso da idéia do bem-estar norte-americano.
Em primeiro lugar, porque as séries apostam na dupla humor e crítica. Vão um pouco além dos gracejos histéricos que dominam boa parte das séries ditas cômicas e tentam usar o riso como arma, se não exatamente de reflexão, de algum tipo de incômodo. Em segundo lugar, porque ali sim há personagens cujos desajustes são impossíveis de serem glamourizados.
Whoopi Goldberg, estrela da série batizada com seu prenome, é daquelas comediantes mais ou menos desperdiçadas pelo cinema, que ou bem lhe dá papéis grandes em filmes ruins ou pequenos em filmes melhores.
Desbocada e sarcástica, Whoopi faz piada de si mesma o tempo todo -mulher, negra, de esquerda etc. É justamente na dupla condição de mulher e negra que seus ataques ao politicamente correto ficam ainda mais certeiros. Na série, ela é Mavis Rae, uma ex-cantora se torna dona de um hotel meio decadente em Manhattan.
Ao lado de um irmão conservador e desempregado, da cunhada branca que se veste e fala como uma negra do Bronx e de um empregado recém-chegado do Irã, Mavis Rae passa em revista de maneira impiedosa a atmosfera extra-moralizante da sociedade norte-americana e os desacertos do governo Bush.
Aliás, o próprio presidente foi alvo de mais de uma gozação ao longo da série. Numa Nova York difícil de ver na TV -dura, segregada, pobre-, os personagens à margem de "Whoopi" representam o outro lado da "city" glamourizada e fashion da série de Sarah Jessica Parker. Durou pouco, é claro -foram só 13 episódios-, o que é uma pena, pois os diálogos afiados e a presença entre perplexa e crítica de Whoopi fazem falta num cenário onde conservadorismo travestido de cultura pop dá o tom.
"Becker" conseguiu durar bem mais, seis temporadas, o que é de espantar, porque a série tinha um humor demolidor e corrosivo. A série do médico mau reclamão também se passava numa Nova York não-turística, no Bronx, e também fazia da ironia pesada sua matéria-prima.
O doutor Becker, antípoda do médico televisivo bem-sucedido ou heróico, não fazia concessão alguma aos não-me-toques verbais em relação às diversas minorias e às deficiências de corpo ou de alma.
Curiosamente, "Becker", cujo humor ácido estava quase à altura de "Seinfeld", sempre teve menor atenção da crítica. O que depõe contra esta, pois indica que também aqueles que escrevem sobre a televisão se deixam levar pelo óbvio.

biabramo.tv@uol.com.br


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