São Paulo, quarta-feira, 18 de julho de 2007

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JOÃO PEREIRA COUTINHO

Cidade de fantasmas


Seis anos depois, Oxford é um estado de espírito que se comunga e que nunca mais se abandona


REGRESSO A Oxford seis anos depois de cá ter estado. Tudo mudou. Para melhor? Para pior? Digamos assim: o primeiro dia em que aqui cheguei, pensei seriamente em voltar para trás. Inverno. Frio. Noite. Sozinho. Uma mala, dezenas de livros, a certeza de dias infindos na biblioteca central. Eu e só eu, na companhia de alguns intelectuais russos do século 19. Por milagre não me fecharam nas catacumbas da Bodleian Library. Mais do que uma vez perdi a noção do tempo e fiquei depois da hora.
Nessa noite, seis anos atrás, lembro que bati à porta do St. Antony's College e uma personagem de romance me recebeu na chegada. Era Philip, ou uma emanação realista dele, o herói coxo de Somerset Maugham, e que num silêncio gélido me encaminhou ao meu quarto. "Quarto" é eufemismo. Uma cela de monge, com mesa de madeira, lavatório na parede, uma cama minúscula que desaconselhava companhias noturnas. Havia um chuveiro, disse ele. Ao fundo do corredor. Comunitário.
E lençóis? E cobertores?
Ele me informou que roupa de cama era responsabilidade do estudante. Agradeci, enrolei-me no sobretudo e adormeci, deprimido e trêmulo, como um herói trágico de Dickens.
Regresso a Oxford seis anos depois. E nesse regresso só existem memórias da mais profunda e obscena felicidade. O colégio, austero e frio, que todas as noites se iluminava no "dining hall" com conversas, disputas e gargalhadas. O clube dos provadores de vinho, de que me fiz sócio, e que quinzenalmente reunia para provar três garrafas, de três pontos distantes do globo, devidamente entrecortadas por bolachas com queijo e explicações preciosas sobre "vinhos que são bons" e "vinhos que estão bons". As festas, sempre as festas, todas as sextas e sábados, com os colégios da cidade em alegre competição entre si. Os livros na Blackwell's, a maior loja da cidade, que vende caro mas vende em prestações. As noites no Eagle and Child, o pub na St. Giles Street que foi segunda casa para Tolkien ou C.S. Lewis. E, por falar em Lewis, o coro de crianças cantando o "Sanctis Solemniis" na capela do Magdalen College. Várias vezes, pedalando pela rua, parava a bicicleta junto ao colégio e sentava na soleira da porta para as ouvir. Enquanto nevava.
E o quarto? A cela de monge, com pouca luz e muita austeridade, transformou-se em sala de visitas para amigos que vinham, sentavam, fumavam, muitas vezes adormeciam e acordavam quando a manhã chegava cedo. E a cama, que desaconselhava companhias noturnas, revelou ter as dimensões certas para as visitas incertas. Faz muito frio na Inglaterra.
Seis anos depois, Oxford não é um lugar. É um estado de espírito que se comunga e que nunca mais se abandona. É impossível ter habitado a cidade sem regressar com a sensação humilhante da nossa pequenez: a pequenez humana perante um céu carregado de fantasmas. Mas existe nessa humilhação uma certeza redentora: a certeza de que estamos vivos, mais vivos do que nunca. E que o passado e o futuro se encontram ali e em nós.


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