São Paulo, quarta-feira, 18 de julho de 2007

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MARCELO COELHO

Alguns tipos inesquecíveis


Caubóis, fascistas, anti-semitas: o mundo dá voltas e a estupidez humana não tem limites


A BARBA branca, o olhar fixo e profundo, a boca cerrada num rito de determinação inimiga. Tudo segue o figurino clássico, sem dúvida, na foto do líder fundamentalista islâmico Abdul Rashid Ghazi, morto na semana passada durante o ataque do governo paquistanês à Mesquita Vermelha, em Islamabad.
Acompanhando a foto, saiu uma curta biografia de Abdul Rashid no jornal "O Estado de S. Paulo". Valeria um livro, e quem sabe um filme.
Abdul Rashid era filho de um fundamentalista e vinha de uma linhagem guerreira do Baluquistão. Durante muito tempo não quis saber de ortodoxia religiosa.
Na adolescência, fugiu da escola islâmica. Usava roupas ocidentais, não tinha barba e formou-se em relações internacionais numa universidade laica. Foi funcionário da Unesco em Islamabad. Seu pai o deserdou.
Em 1998, veio uma tragédia: o pai de Abdul Rashid foi assassinado por desconhecidos na mesquita. O herdeiro do posto era o irmão mais velho de Abdul Rashid, o mulá Aziz. Veio o cerco do governo paquistanês à mesquita, e Aziz foi preso, tentando fugir disfarçado de mulher (as burkas têm essa utilidade).
Foi a vez do antigo funcionário da Unesco assumir o posto de líder do movimento extremista. A barba já tinha crescido antes: Abdul Rashid aderiu ao fundamentalismo assim que viu seu pai ser assassinado. Menos de dez anos depois, ele é morto também.
Com ingredientes diversos, a história lembra a saga da família Corleone. Há algo de vendeta mafiosa e de apelos do sangue nesse conflito, atraindo para o morticínio e o crime as gerações mais jovens, que se empenhavam em contestar a tradição.
De modo bem mais radical do que o caso de Al Pacino nos filmes do "Chefão", parece incorporar-se aqui, no destino de um único indivíduo, o fracasso prático de um ideal de modernidade face aos apelos da vingança e da honra familiar.
Em todo caso, para falar mais sobre o assunto, só depois da biografia que ainda está para ser escrita. Acontece que estou lendo um excelente livro do historiador americano Robert Paxton, "A Anatomia do Fascismo", recém-publicado pela editora Paz e Terra.
Tem 400 páginas e parece ter muito mais, tal a quantidade de informações surpreendentes, concisas e atualizadas que oferece ao leitor. Não há grandes interpretações teóricas sobre o fenômeno, mas uma sintonia finíssima das relações entre o acaso e a fatalidade históricas, dissolvendo a noção habitualmente monolítica que temos de regimes desse tipo. O que não quer dizer que não fossem asquerosos e doentios.
Uma das muitas razões para o asco do leitor está nos pequenos perfis biográficos que Paxton inclui na narrativa. Entre os líderes pequenos, médios e grandes do fascismo mundial, há algumas figuras especialmente repulsivas e, apesar disso, interessantes.
Deixemos então Abdul Rashid descansar em meio às virgens do Paraíso e focalizemos, por exemplo, o marquês de Morès, que, na França de 1880, organizou um bando de desordeiros para atacar judeus e defender um credo anticapitalista e nacionalista. Foi saudado pelo também repulsivo esteta e escritor Maurice Barrès, em 1896, como "o primeiro nacional-socialista". É o primeiro registro histórico do tema.
O marquês de Morès tentou criar gado na Dakota do Norte; não deu certo. Mas trouxe de lá os chapéus de caubói. De modo que seu grupo anti-semita agia nas ruas de Paris com roupas de faroeste. Num "modesto exagero de imaginação", diz Paxton, não sei com quanta ironia, esse teria sido o primeiro uniforme fascista. Morès terminou assassinado por tuaregues no Saara, numa expedição que visava "unir a França ao islã".
Caubóis, muçulmanos, fascistas, anti-semitas: o mundo dá voltas. Não há espaço para falar de Roberto Farinacci, cujo radicalismo teve de ser controlado pelo próprio Mussolini, nem de Ante Pavelic, líder de um movimento que chocou até mesmo os observadores nazistas matando, em pouco tempo, 500 mil sérvios, 200 mil croatas, 90 mil muçulmanos bósnios, 50 mil montenegrinos e 30 mil eslovenos. Nem mesmo do consagrado e ridículo escritor Gabriele d'Annunzio, o primeiro a instituir a saudação fascista. Ambos aparecem rapidamente no livro de Paxton.
A estupidez humana, como se sabe, não tem limites. Os deste artigo chegam ao fim.

coelhofsp@uol.com.br


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