São Paulo, sábado, 18 de julho de 1998

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Ronaldinho foi a princesa Diana da Copa 98

ALBERTO DINES

Depois da farra, a ressaca -inevitável. À intensidade das libações corresponde sempre um refluxo. De igual força e pressão. Crianças manobram as gangorras instintivamente, mas só se tornam adultas quando passam a entender a inexorável Lei dos Pêndulos ou o Princípio dos Efeitos Adversos.
A eterna criança não é uma gracinha, mas uma perigosa deformação de personalidade. Ignora consequências, deixando livre um mecanismo que anula a percepção de limites e confunde fantasia com realidade.
Designei aqui como "Farra da Copa" não o evento -o Mundial de Futebol-, mas a cobertura dele, o Grande Circo das Ilusões. Um ecossistema artificial, realimentado pelos próprios efeitos: começou nas gordas verbas publicitárias, inflamou a megalomania do "jornalismo total" que, por sua vez, acendeu as fogueiras de vaidades em que arderam os mais comezinhos cuidados e princípios de compostura jornalística.
Estou pisando em campo minado: neste exato momento converti em eternos inimigos os cerca de 200 jornalistas brasileiros credenciados para cobrir a Copa e quase outro tanto de profissionais da mídia eletrônica.
Abro exceção para um pequeno escrete de analistas experimentados, repórteres especializados e estudiosos -talvez 10% desse total- que souberam complementar as imagens oferecidas pela TV.
O resto abancou-se numa Bastilha frágil e fictícia que ruiu a 12 de Julho, dois dias antes do aniversário da queda da outra. Falou-se em tragédia, em função dos efeitos. Na verdade, o país desmoronou, humilhado e ferido, por causa de uma burla que consumou-se às escondidas, clandestina, ao longo de seis horas e trinta minutos.
O Brasil perdeu a Copa na concentração, cinco horas antes do apito final. Ao longo de cinco semanas, na única ocasião em os jornalistas tiveram a oportunidade para exercitar o verdadeiro jornalismo e contar algo que não aparecia na telinha da TV, não apareceu viva alma para farejar essa história.
A Copa foi perdida nos bastidores e ninguém cobriu os bastidores. Critica-se o futebol de resultados, mas o que está em questão é o jornalismo de resultados e evidências -mera reprodução do placar, temperada com algo picante, o tal "ângulo". Nos intervalos dos jogos, a fabricação incessante de irrelevâncias e factóides para manter a pressão e euforia.
Enquanto Ronaldinho, companheiros e dirigentes viviam aquela angústia na concentração e no vestiário, rádios e televisões esquentavam as cuícas para a grande batucada do Penta. Uma realidade virtual rigorosamente oposta à realidade real. Um gigantesco faz-de-conta na cobertura mais cara da história do jornalismo brasileiro.
Ao longo dos 90 minutos, 100 milhões de brasileiros assistiram atônitos àquela canhestra exibição futebolística, sem que lhes fosse oferecida pelos meios eletrônicos (a tal mídia do futuro) nenhuma migalha sobre o ocorrido pouco antes.
A não ser as escassas informações, nos minutos que precederam a entrada em campo, relacionadas com a troca do nome de Edmundo por Ronaldinho nos formulários da FIFA, atribuída a um engano.
As primeiras pistas só começaram a aparecer nas mesas redondas da TV à noite. Dez horas depois da ocorrência. A teoria da "convulsão" foi veiculada nos jornais do dia seguinte, a mais amarga segunda-feira de nossa história futebolística.
Rolou nos jornais, inconteste, ao longo de alguns dias, por meio de uma celeuma que poderia ser classificada de ridícula, não envolvesse questões tão delicadas e graves.
Médicos que querem aparecer e jornalistas que se consideram independentes apenas porque chamam de "cretino" o personagem da semana deram a nota paroquial e arrogante, prontamente repassada para o exterior.
E como no hemisfério norte é verão, em geral carente de assuntos, Ronaldinho virado pelo avesso voltou a ser notícia. Como foi Diana Spencer, ao longo do verão passado.
Custo a crer que, com a pletora de recursos técnicos e humanos, não ocorresse destacar um profissional para ficar de plantão, no dia do jogo, na porta do castelo-concentração. Saiu algum carro antes do ônibus? Os jogadores embarcaram alegres ou macambúzios? Vizinhos notaram algo diferente? Funcionários da hospedaria perceberam gritos, correrias? Guardas repararam anormalidades? Se os manuais recomendam que sempre deve haver um jornalista olhando para o outro lado, por que, desta vez, todos ficaram olhando a mesma coisa?
A investigação que os "enviados especiais" fizeram na última quarta-feira não poderia ter sido feita no domingo? Ou, pelo menos, imediatamente depois que os jogadores regressaram ao Brasil?
Fala-se no instinto jornalístico, mas, desta vez, funcionou apenas uma enorme e incontrolável compulsão de assistir à final. Claro que não alteraria o fiasco em campo, mas evitaria o fiasco da cobertura. Cobertura não é apenas nome de apartamento no último andar. É um processo de busca da verdade.
Essa é a questão. A mídia brasileira, ao submeter-se ao humilhante "diktat" do marketing, justifica-se com a alegação do alto custo da operação jornalística. Mas nesta temporada de vacas gordas, nenhuma empresa pediu contenção de gastos aos profissionais.
Equipes numerosas, mini-redações transferidas para Paris e arredores. Abundância inédita de espaço e tempo para magnificar qualquer idiotice.
Muitos trabalhavam com celulares, comunicavam-se regularmente com suas fontes (jogadores e dirigentes), havia assistentes e produtores por toda a parte desdobrando-se em inutilidades, colunistas sociais, cartunistas, humoristas, cassandras, jornalistas-vedetes e vedetes credenciadas como jornalistas (uma delas, Suzana Werner).
Na outra ponta, um país estatelado, ávido por informações, qualquer informação.
Estamos acostumados a considerar o futebol como algo à parte, desligado das exigências, leis, instituições e padrões morais do resto da sociedade. O resultado é que o futebol acabou convertendo-se numa terra de ninguém, onde reinam os mais controvertidos interesses.
Quando a Fifa e a CBF cassaram a credencial do jornalista Juca Kfouri, sugeri uma operação-limpeza, qualquer que fosse o resultado da Copa.
Chegou a hora. Não porque a Comissão Técnica continue mentindo a respeito de Ronaldinho. Esse é o seu único quinhão de nobreza, tentando proteger uma eterna criança das realidades da vida. Chegou a hora, pelo acúmulo de vexames, tibieza, amadorismo e mandonismo em décadas de impunidade.
O novo circo mediático mundial é o futebol. A Fórmula-1 já não empolga, é distante do público, intermitente, não mostra rostos, apenas máquinas, todas parecidas. Há dinheiro grosso correndo no futebol, verdadeiras minas de ouro, às custas dos mais puros e santos sentimentos populares.
A dinheirama não impediu que apresentássemos ao mundo uma equipe sem espírito de equipe, desprovida de tenacidade. Desfibrada. Não fomos batidos por Zidane, mas antes, fora de campo, porque não confiamos em nós mesmos, apenas nos golpes de sorte e jogadas de gênio.
Quando fraquejou o iluminado, das sombras esparramou-se a Síndrome do Pânico. Enfermidade como outra qualquer, listada no Cadastro Internacional de Doenças, curável, sem sequelas. Basta encarar.
Desafio nacional: quaisquer que tenham sido as causas daquele terror, sobrou para nós.



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