|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Ronaldinho foi a princesa Diana da Copa 98
ALBERTO DINES
Depois da farra, a ressaca
-inevitável. À intensidade
das libações corresponde sempre um refluxo. De igual força
e pressão. Crianças manobram
as gangorras instintivamente,
mas só se tornam adultas
quando passam a entender a
inexorável Lei dos Pêndulos ou
o Princípio dos Efeitos Adversos.
A eterna criança não é uma
gracinha, mas uma perigosa
deformação de personalidade.
Ignora consequências, deixando livre um mecanismo que
anula a percepção de limites e
confunde fantasia com realidade.
Designei aqui como "Farra
da Copa" não o evento -o
Mundial de Futebol-, mas a
cobertura dele, o Grande Circo
das Ilusões. Um ecossistema
artificial, realimentado pelos
próprios efeitos: começou nas
gordas verbas publicitárias,
inflamou a megalomania do
"jornalismo total" que, por sua
vez, acendeu as fogueiras de
vaidades em que arderam os
mais comezinhos cuidados e
princípios de compostura jornalística.
Estou pisando em campo minado: neste exato momento
converti em eternos inimigos
os cerca de 200 jornalistas brasileiros credenciados para cobrir a Copa e quase outro tanto de profissionais da mídia
eletrônica.
Abro exceção para um pequeno escrete de analistas experimentados, repórteres especializados e estudiosos -talvez 10% desse total- que souberam complementar as imagens oferecidas pela TV.
O resto abancou-se numa
Bastilha frágil e fictícia que
ruiu a 12 de Julho, dois dias
antes do aniversário da queda
da outra. Falou-se em tragédia, em função dos efeitos. Na
verdade, o país desmoronou,
humilhado e ferido, por causa
de uma burla que consumou-se às escondidas, clandestina, ao longo de seis horas e
trinta minutos.
O Brasil perdeu a Copa na
concentração, cinco horas antes do apito final. Ao longo de
cinco semanas, na única ocasião em os jornalistas tiveram
a oportunidade para exercitar
o verdadeiro jornalismo e contar algo que não aparecia na
telinha da TV, não apareceu
viva alma para farejar essa
história.
A Copa foi perdida nos bastidores e ninguém cobriu os bastidores. Critica-se o futebol de
resultados, mas o que está em
questão é o jornalismo de resultados e evidências -mera
reprodução do placar, temperada com algo picante, o tal
"ângulo". Nos intervalos dos
jogos, a fabricação incessante
de irrelevâncias e factóides para manter a pressão e euforia.
Enquanto Ronaldinho, companheiros e dirigentes viviam
aquela angústia na concentração e no vestiário, rádios e televisões esquentavam as cuícas
para a grande batucada do
Penta. Uma realidade virtual
rigorosamente oposta à realidade real. Um gigantesco
faz-de-conta na cobertura
mais cara da história do jornalismo brasileiro.
Ao longo dos 90 minutos, 100
milhões de brasileiros assistiram atônitos àquela canhestra
exibição futebolística, sem que
lhes fosse oferecida pelos meios
eletrônicos (a tal mídia do futuro) nenhuma migalha sobre
o ocorrido pouco antes.
A não ser as escassas informações, nos minutos que precederam a entrada em campo,
relacionadas com a troca do
nome de Edmundo por Ronaldinho nos formulários da FIFA, atribuída a um engano.
As primeiras pistas só começaram a aparecer nas mesas
redondas da TV à noite. Dez
horas depois da ocorrência. A
teoria da "convulsão" foi veiculada nos jornais do dia seguinte, a mais amarga segunda-feira de nossa história futebolística.
Rolou nos jornais, inconteste, ao longo de alguns dias, por
meio de uma celeuma que poderia ser classificada de ridícula, não envolvesse questões
tão delicadas e graves.
Médicos que querem aparecer e jornalistas que se consideram independentes apenas
porque chamam de "cretino" o
personagem da semana deram
a nota paroquial e arrogante,
prontamente repassada para o
exterior.
E como no hemisfério norte é
verão, em geral carente de assuntos, Ronaldinho virado pelo avesso voltou a ser notícia.
Como foi Diana Spencer, ao
longo do verão passado.
Custo a crer que, com a pletora de recursos técnicos e humanos, não ocorresse destacar
um profissional para ficar de
plantão, no dia do jogo, na
porta do castelo-concentração.
Saiu algum carro antes do ônibus? Os jogadores embarcaram
alegres ou macambúzios? Vizinhos notaram algo diferente?
Funcionários da hospedaria
perceberam gritos, correrias?
Guardas repararam anormalidades? Se os manuais recomendam que sempre deve haver um jornalista olhando para o outro lado, por que, desta
vez, todos ficaram olhando a
mesma coisa?
A investigação que os "enviados especiais" fizeram na última quarta-feira não poderia
ter sido feita no domingo? Ou,
pelo menos, imediatamente
depois que os jogadores regressaram ao Brasil?
Fala-se no instinto jornalístico, mas, desta vez, funcionou
apenas uma enorme e incontrolável compulsão de assistir
à final. Claro que não alteraria o fiasco em campo, mas
evitaria o fiasco da cobertura.
Cobertura não é apenas nome
de apartamento no último andar. É um processo de busca da
verdade.
Essa é a questão. A mídia
brasileira, ao submeter-se ao
humilhante "diktat" do marketing, justifica-se com a alegação do alto custo da operação jornalística. Mas nesta
temporada de vacas gordas,
nenhuma empresa pediu contenção de gastos aos profissionais.
Equipes numerosas, mini-redações transferidas para Paris
e arredores. Abundância inédita de espaço e tempo para
magnificar qualquer idiotice.
Muitos trabalhavam com celulares, comunicavam-se regularmente com suas fontes (jogadores e dirigentes), havia assistentes e produtores por toda
a parte desdobrando-se em
inutilidades, colunistas sociais, cartunistas, humoristas,
cassandras, jornalistas-vedetes
e vedetes credenciadas como
jornalistas (uma delas, Suzana
Werner).
Na outra ponta, um país estatelado, ávido por informações, qualquer informação.
Estamos acostumados a considerar o futebol como algo à
parte, desligado das exigências, leis, instituições e padrões
morais do resto da sociedade.
O resultado é que o futebol
acabou convertendo-se numa
terra de ninguém, onde reinam os mais controvertidos
interesses.
Quando a Fifa e a CBF cassaram a credencial do jornalista
Juca Kfouri, sugeri uma operação-limpeza, qualquer que fosse o resultado da Copa.
Chegou a hora. Não porque a
Comissão Técnica continue
mentindo a respeito de Ronaldinho. Esse é o seu único quinhão de nobreza, tentando
proteger uma eterna criança
das realidades da vida. Chegou a hora, pelo acúmulo de
vexames, tibieza, amadorismo
e mandonismo em décadas de
impunidade.
O novo circo mediático mundial é o futebol. A Fórmula-1 já
não empolga, é distante do público, intermitente, não mostra
rostos, apenas máquinas, todas parecidas. Há dinheiro
grosso correndo no futebol,
verdadeiras minas de ouro, às
custas dos mais puros e santos
sentimentos populares.
A dinheirama não impediu
que apresentássemos ao mundo uma equipe sem espírito de
equipe, desprovida de tenacidade. Desfibrada. Não fomos
batidos por Zidane, mas antes,
fora de campo, porque não
confiamos em nós mesmos,
apenas nos golpes de sorte e jogadas de gênio.
Quando fraquejou o iluminado, das sombras esparramou-se a Síndrome do Pânico.
Enfermidade como outra qualquer, listada no Cadastro Internacional de Doenças, curável, sem sequelas. Basta encarar.
Desafio nacional: quaisquer
que tenham sido as causas daquele terror, sobrou para nós.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|