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RESENHA DA SEMANA
O homem natural
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
É difícil saber até onde vai
a ironia de "Mulheres com
Homens", que reúne três contos
longos de Richard Ford, 57. O
autor já foi identificado a Hemingway e costuma ser associado à tradição da literatura americana que preza a virilidade como um elemento romanesco
fundamental. Mas os três contos
em questão tratam deliberadamente de alguns dos clichês
mais surrados do imaginário
masculino americano.
Ford é um escritor tradicional
-valoriza a tradição em oposição à ruptura-, mas não é burro ou insensível. Ao contrário.
Ao lado de Raymond Carver e
Tobias Wolff, integra uma tendência realista e minimalista em
que os sentimentos se revelam
por detalhes e elipses, nos desencontros e mal-entendidos,
na impossibilidade de expressá-los. Ao seu modo, Ford encontrou na figura do homem americano simples e ligado à natureza
a representação psicológica
mais perfeita dessa impossibilidade de expressão.
Um dos princípios da tradição
viril na literatura americana é a
crença na verdade das palavras e
dos sentimentos. A crença de
que uma representação verdadeira e sincera dos sentimentos
é suficiente para manter a força
e os valores da tradição -e o interesse da literatura. O oposto de
uma prosa pós-moderna. Os valores máximos dessa literatura
são os bons sentimentos, a espirituosidade e a simplicidade
narrativa, como se não houvesse
nenhum artifício, apenas a descrição direta de um mundo natural, aventureiro ou doméstico.
O mais interessante em Ford,
no entanto, ocorre quando ele
sobrepõe a incapacidade de expressão a essa aparente simplicidade. E é aí que surge a ironia. A
verdade só é verdadeira porque
não pode ser dita. É justamente
por não conseguirem expressar
o que sentem que os personagens de Ford se tornam ainda
mais reais e densos e, de alguma
forma, vítimas de si mesmos. É a
defasagem entre o que sentem e
o que dizem que dá a eles um peso ainda mais dramático e verdadeiro e a essa prosa uma qualidade especialmente sensível e
autêntica.
Em contrapartida, quando
conseguem manifestar seus
pensamentos e sentimentos,
ainda que por intermédio de um
narrador, esses personagens se
enfraquecem e correm o risco de
se dissolverem no próprio prosaísmo. É o que acontece em alguns momentos de "Mulheres
com Homens".
Os dois contos mais longos do
livro falam de americanos em
Paris. "O Mulherengo" trata de
um velho fetiche americano: o
executivo do Meio-Oeste, casado, em viagem de negócios, tem
um "affair" com uma francesa.
"Ocidentais" fala de um americano divorciado que vai à "cidade-luz" com a namorada e acaba
passando uma temporada no
inferno. O choque cultural e o
confronto de clichês (o que os
americanos pensam dos franceses e o que os franceses pensam
dos americanos) funcionam como alegorias das relações e dos
desencontros entre homens e
mulheres, e parecem expressar o
ponto de vista do autor. A alegoria enfraquece o realismo.
"Ciúme", por outro lado, retoma com menos fôlego o universo de uma pequena obra-prima
de Ford: a novela "Vida Selvagem" (1990), construída em torno da imagem heróica e idílica
de uma América masculina em
contato com a natureza. No conto, um menino, filho de pais separados, morando com o pai em
Montana, é levado pela tia para
ver a mãe em Seattle. O texto
narra as peripécias dessa viagem, mas sob a sombra da figura do pai abandonado pela mãe,
esse homem recolhido ao silêncio solitário e selvagem das
grandes planícies.
Como em "Vida Selvagem",
que começava com uma frase
deslumbrante na sua simplicidade ("No outono de 1960,
quando eu tinha 16 anos e meu
pai estava por um tempo sem
trabalhar, minha mãe conheceu
um homem chamado Warren
Miller e se apaixonou por ele"),
o que garante mesmo a verdade
do conto é o ponto de vista do
menino, que percebe o desatino
e o desejo dos adultos apenas
nos interstícios, por indícios, no
que não lhe é revelado com todas as letras.
Como o "homem natural" de
seus textos, que é tão mais romanesco por não saber expressar os próprios sentimentos, Richard Ford é um escritor que
derrapa quando resolve manifestar suas opiniões através de
personagens com os quais se
identifica. A qualidade de sua
prosa vem da observação do que
eles fazem, mas não da revelação
do que eles pensam.
Mulheres com Homens
Women with Men
Autor: Richard Ford
Tradução: Beatriz Horta e Neuza
Campelo
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (256 págs.)
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