São Paulo, sábado, 18 de agosto de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O homem natural

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil saber até onde vai a ironia de "Mulheres com Homens", que reúne três contos longos de Richard Ford, 57. O autor já foi identificado a Hemingway e costuma ser associado à tradição da literatura americana que preza a virilidade como um elemento romanesco fundamental. Mas os três contos em questão tratam deliberadamente de alguns dos clichês mais surrados do imaginário masculino americano.
Ford é um escritor tradicional -valoriza a tradição em oposição à ruptura-, mas não é burro ou insensível. Ao contrário. Ao lado de Raymond Carver e Tobias Wolff, integra uma tendência realista e minimalista em que os sentimentos se revelam por detalhes e elipses, nos desencontros e mal-entendidos, na impossibilidade de expressá-los. Ao seu modo, Ford encontrou na figura do homem americano simples e ligado à natureza a representação psicológica mais perfeita dessa impossibilidade de expressão.
Um dos princípios da tradição viril na literatura americana é a crença na verdade das palavras e dos sentimentos. A crença de que uma representação verdadeira e sincera dos sentimentos é suficiente para manter a força e os valores da tradição -e o interesse da literatura. O oposto de uma prosa pós-moderna. Os valores máximos dessa literatura são os bons sentimentos, a espirituosidade e a simplicidade narrativa, como se não houvesse nenhum artifício, apenas a descrição direta de um mundo natural, aventureiro ou doméstico.
O mais interessante em Ford, no entanto, ocorre quando ele sobrepõe a incapacidade de expressão a essa aparente simplicidade. E é aí que surge a ironia. A verdade só é verdadeira porque não pode ser dita. É justamente por não conseguirem expressar o que sentem que os personagens de Ford se tornam ainda mais reais e densos e, de alguma forma, vítimas de si mesmos. É a defasagem entre o que sentem e o que dizem que dá a eles um peso ainda mais dramático e verdadeiro e a essa prosa uma qualidade especialmente sensível e autêntica.
Em contrapartida, quando conseguem manifestar seus pensamentos e sentimentos, ainda que por intermédio de um narrador, esses personagens se enfraquecem e correm o risco de se dissolverem no próprio prosaísmo. É o que acontece em alguns momentos de "Mulheres com Homens".
Os dois contos mais longos do livro falam de americanos em Paris. "O Mulherengo" trata de um velho fetiche americano: o executivo do Meio-Oeste, casado, em viagem de negócios, tem um "affair" com uma francesa. "Ocidentais" fala de um americano divorciado que vai à "cidade-luz" com a namorada e acaba passando uma temporada no inferno. O choque cultural e o confronto de clichês (o que os americanos pensam dos franceses e o que os franceses pensam dos americanos) funcionam como alegorias das relações e dos desencontros entre homens e mulheres, e parecem expressar o ponto de vista do autor. A alegoria enfraquece o realismo.
"Ciúme", por outro lado, retoma com menos fôlego o universo de uma pequena obra-prima de Ford: a novela "Vida Selvagem" (1990), construída em torno da imagem heróica e idílica de uma América masculina em contato com a natureza. No conto, um menino, filho de pais separados, morando com o pai em Montana, é levado pela tia para ver a mãe em Seattle. O texto narra as peripécias dessa viagem, mas sob a sombra da figura do pai abandonado pela mãe, esse homem recolhido ao silêncio solitário e selvagem das grandes planícies.
Como em "Vida Selvagem", que começava com uma frase deslumbrante na sua simplicidade ("No outono de 1960, quando eu tinha 16 anos e meu pai estava por um tempo sem trabalhar, minha mãe conheceu um homem chamado Warren Miller e se apaixonou por ele"), o que garante mesmo a verdade do conto é o ponto de vista do menino, que percebe o desatino e o desejo dos adultos apenas nos interstícios, por indícios, no que não lhe é revelado com todas as letras.
Como o "homem natural" de seus textos, que é tão mais romanesco por não saber expressar os próprios sentimentos, Richard Ford é um escritor que derrapa quando resolve manifestar suas opiniões através de personagens com os quais se identifica. A qualidade de sua prosa vem da observação do que eles fazem, mas não da revelação do que eles pensam.


Mulheres com Homens
Women with Men
   
Autor: Richard Ford
Tradução: Beatriz Horta e Neuza Campelo
Editora: Record
Quanto: R$ 30 (256 págs.)



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