|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
Crime e castigo
A Promotoria do Consumidor de SP presta serviço exemplar à cidadania brasileira
|
DIFÍCIL ler notícia boa na primeira página. Mas, segunda-feira, quando abri a Folha, só
não caí de costas porque estava
sentado. Vinha escrito que a Promotoria do Consumidor de São
Paulo ajuizou ação contra a Souza
Cruz e a Philip Morris Brasil, para
que compensem os gastos públicos
com as doenças causadas ou agravadas pelo fumo.
Explico as razões pelas quais o
referido espanto por pouco não me
transformou em mais uma das vítimas involuntárias do cigarro.
Há anos esta coluna defende que
os fabricantes de cigarro paguem
pelo tratamento das doenças que
disseminam impunemente.
A Souza Cruz, que não é do senhor Souza e muito menos do senhor Cruz, e a Philip Morris, que
não sei se algum dia pertenceu aos
senhores Philip ou Morris, dominam mais de 80% do mercado nacional. Em linguagem mais precisa,
fornecem droga para 80% dos dependentes de nicotina do país.
É um mercado cativo de mulheres e homens induzidos ao vício na
puberdade e adolescência. São milhões de crianças arregimentadas
por meio da publicidade criminosa
que ligou o cigarro à liberdade, à
performance esportiva e ao sucesso nas conquistas amorosas, veiculada sem restrições legais pelos
meios de comunicação de massa
até pouquíssimo tempo atrás.
Em matéria de dependência química, a nicotina é imbatível. Vicia
mais que cocaína, heroína, crack,
álcool, anfetamina ou qualquer
droga já inventada. Em 40 anos de
profissão, perdi a conta dos que sucumbiram às doenças causadas pelo fumo sem conseguir livrar-se dele, por mais que tenham tentado.
Por entender que os fabricantes
de cigarro são responsáveis por
vender uma droga que provoca
câncer, enfisema, derrames cerebrais, ataques cardíacos e uma infinidade de outras patologias, tanto
nos fumantes como nos que têm o
azar de conviver com eles, o governo dos Estados Unidos processou
as principais indústrias do setor
com o objetivo de forçá-las a indenizar o sistema de saúde.
Da batalha judicial, resultou um
acordo celebrado em 1998. As empresas se comprometeram a pagar
US$ 206 bilhões, no período de 25
anos, para indenizar 46 Estados
americanos. Flórida, Mississipi,
Minnesota e Texas optaram por
acordos isolados.
Na matéria publicada na Folha
pelo jornalista Daniel Bergamasco,
a assessoria da Souza Cruz faz
questão de "ressaltar que a comercialização de cigarros no Brasil é
atividade lícita e amplamente regulamentada e tributada pelo poder público, e que os riscos associados ao cigarro são de amplo conhecimento público há décadas".
Sem entrar no mérito do papel a
que determinadas pessoas se sujeitam para ganhar a vida, é importante deixar claro que, de fato, os
malefícios do cigarro são conhecidos há décadas. Pena que só pudessem chegar aos usuários mais esclarecidos (e só a eles) tão recentemente, porque as companhias citadas, em compadrio obsceno com
suas congêneres, tradicionalmente
arregimentaram médicos e cientistas de aluguel para criticar qualquer estudo que porventura demonstrasse a relação entre cigarro,
doença e mortalidade. Sem falar no
imenso poder intimidatório das
verbas publicitárias na hora de calar a imprensa mundial.
Quem perpetrou tais crimes por
mais de 50 anos, com o objetivo de
universalizar uma epidemia causadora de mais mortes do que as
guerras do século 20 somadas, por
acaso tem idoneidade para dizer
que fumantes adoecem por ignorar
os avisos de que o cigarro mata?
Na cadeia, conheci um traficante
de crack que usava a mesma lógica,
porém com mais honestidade de
princípios: "Eu vendo a morte, mas
não induzo ninguém a comprar".
A ação indenizatória ora proposta coloca a Justiça brasileira diante
de uma questão crucial: a vida de
um cidadão americano vale mais?
Se nos Estados Unidos as companhias pagam mais de US$ 200 bilhões, por que razão no Brasil merecem ficar impunes? Talvez porque sejamos mais ricos? Ou devemos aceitar que somos inferiores?
A Promotoria do Consumidor de
SP presta serviço exemplar à cidadania brasileira e ao nosso combalido sistema de saúde. Na pior das
hipóteses, se por razões estranhas
o pedido de indenização for julgado improcedente ou mofar nos escaninhos da burocracia, resta a alternativa de mover uma ação na
Justiça americana.
Quando um avião cai por defeito
numa peça, as famílias não processam o fabricante nos EUA?
Texto Anterior: Debate: Série discute a alienação feminina Próximo Texto: Resumo das novelas Índice
|