São Paulo, Sábado, 18 de Setembro de 1999
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DISCO CRÍTICA

O cara ainda é grande

do enviado ao Rio

Nem devido às dificuldades a que o descaso da indústria constrange Luiz Melodia seu "Acústico ao Vivo" poderia ser tarjado de menos ou mais fácil e/ ou oportunista que os similares que vêm infestando o mercado.
Não. É disco de alternativa cômoda, como a grande maioria dos demais, desovados aos borbotões em época em que as gravadoras querem é cerrar os cofres. Mas se faz diferente deles pela forma como lida com a falta de recursos e com a própria marginalização.
É nitidamente um disco pobre. Mas, aparentemente bravo, Melodia rebola pelas adversidades valendo-se da senha da criatividade. Como não há aparato, restam só ele e dois exímios violões.
E ele já sai se servindo do samba "Diz Que Fui por Aí", de Zé Keti, para zombar das vacas magras: "Eu tenho um violão para me acompanhar/ Tenho muitos amigos, eu sou popular". É isso aí.
Criatividade na sacola, é engraçado, mas ele vislumbra em tal concisão soluções para dilemas que o vêm perseguindo. Os violões, por exemplo, tanto dão outro aspecto a composições que precisavam continuar sendo próximas de perfeitas quanto limpam o excesso de metais que havia complicado as boas músicas que compunham "14 Quilates" (97), seu disco anterior.
Também a voz, que andava enfraquecida desde "Relíquias" (95, projeto de revisão que só agora parece se consumar), estava inspirada nos dias de gravação deste ao vivo -e se está falando, aqui, de um dos melhores intérpretes vivos do Brasil.
Mas no passeio pelas canções revistas se lembra que não é só de um grande intérprete que se trata. A escrita rascante, surrealista de "Fadas" (78), da sadomasoquista "Surra de Chicote" (80, em releitura irrepreensível) ou das clássicas "Magrelinha" (73) e "Só" (83, magistralmente reinterpretada) demonstra que Melodia sempre foi autor de mão cheia.
E nem, ainda, é só isso. O desfile que "Pérola Negra", "Estácio Holly Estácio" (73), o tocante sambinha "Maura" (de seu pai, Oswaldo Melodia) e mesmo a nova "Cuidando de Você" proporcionam ajuda a expor com justeza modesta a importância que Melodia guarda na história da MPB.
É só ver o que ele tem feito. Em 1971-73, quando apareceu, rompeu preconceitos aprofundando Jorge Ben e Cassiano e injetando blues, rhythm'n'blues, soul, funk, rock'n'roll e jovem guarda (quase sempre pela verve do genial Getúlio Cortes, o verdadeiro "negro gato") no samba -e, aqui, menos diluindo o samba que libertando a música negra brasileira de rótulos e convenções.
Depois, a partir do segundo LP, "Maravilhas Contemporâneas" (76), congregou um grupo de músicos que formaria, logo em seguida, a mítica Banda Black Rio, "africanizadora" do Brasil.
Quase ninguém se lembra disso, mas Melodia foi inaugurador desse movimento que trouxe como efeito colateral extramusical reforçar os laços de orgulho negro no Brasil, de modo muito mais contundente do que fizera, no início dos 70, o "black is beautiful", quando a branquela Elis Regina cantava "eu quero um homem de cor", composto pelos branquelos Paulo Sérgio e Marcos Valle.
O que mais? Adiante, em "Felino" (83), Melodia resvalou no reggae (em "Só", especialmente), mas sem dar crédito à pasteurização com que à mesma época Gilberto Gil se chegava ao gênero.
Assim tem sido Luiz Melodia, como muitos arrefecido na lavanderia dos 80 e 90. "Acústico ao Vivo", seja o que for, traz o mérito de confrontar Melodia com sua própria grandeza. O cara é grande. (PAS)


Avaliação:    


Disco: Acústico ao Vivo
Artista: Luiz Melodia
Lançamento: Indie Records
Quanto: R$ 18, em média


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