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Epopéia de um esteta
Encenador italiano Gianni Ratto, no Brasil há 50 anos,
é tema de documentário
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 1954, Gianni Ratto deixou a
Itália movido por duas paixões: o
teatro e as mulheres.
"Ele veio por amor a Luciana
[Petrucelli, figurinista com quem
viajou para o Brasil, mas depois
ela voltou]", afirma uma das suas
ex-mulheres, Kati de Almeida
Braga, mãe de Antonia Ratto, co-diretora de um documentário sobre o pai .
A declaração está no longa-metragem "Gianni Ratto" (título a
ser confirmado), confluência da
vida e da obra do diretor e cenógrafo de 88 anos, casado com a socióloga Vaner Maria Birolli Ratto.
Ele é remanescente da geração
de italianos que chegou entre os
anos 40 e 50 e ajudou a esquadrinhar a modernidade do teatro
brasileiro (Adolfo Celi, Ruggero
Jacobbi etc).
Quando saiu da Itália, há 50
anos, Ratto já era um respeitado
cenógrafo no meio da ópera e do
teatro. Trabalhou com Giorgio
Strehler (1921-97) e Paolo Grassi
(1919-81), fundadores do Piccolo
Teatro de Milão. Fez criações para
montagens com a cantora de ópera Maria Callas, por exemplo.
"O Gianni Ratto nos deu essa
consciência cultural e educacional do teatro", diz Fernanda Montenegro, que foi dirigida por ele na
mocidade.
O filme procura alinhavar a
condição de esteta do homem que
aprendeu a captar o belo numa
obra de arte, mas também numa
flor, num animal. "A beleza é uma
meretriz que se entrega facilmente a santos e assassinos", escreveu
no livro de memórias "A Mochila
do Mascate" (1996), uma das referências do roteiro da dupla Antonia e Gabriela Greeb, que encabeça a direção do documentário,
"Gravamos pelo menos duas seqüências, uma com uma criança
lendo o livro dele e outra noturna,
com uma mulher nua, fora de foco. São metáforas estéticas para
momentos de silêncio", diz
Greeb, 37, que assina seu primeiro
longa-metragem, depois de curtas como "A Ilusão" e "Floreados
do Repique".
O próprio Ratto é o narrador,
por assim dizer. "É um filme com
ele, não sobre ele", diz Antonia,
27, que estréia no cinema. Segunda dos três filhos do encenador,
ela tem formação em design gráfico; no teatro, fez assistência para
Denise Stoklos no espetáculo
"Calendário da Pedra".
O filme
O documentário abre com reunião de amigos e familiares nos 87
anos de Ratto, em 27 de agosto de
2003, na casa do bairro paulistano
do Pacaembu. Na ocasião, o pianista Achile Picchi executa uma
rara partitura que a mãe do encenador, Maria Ratto, criara nos
anos 50. Segue-se uma viagem
que casa depoimentos de amigos
e do próprio Ratto, numa perspectiva que dispensa cronologia e
joga com fusões de imagens do
mar. O agito ou mansidão das ondas sempre o seduziram.
Afinal, foram 14 dias em navio,
do terminal de Crociere, em Gênova, até o cais da praça Mauá, no
Rio de Janeiro, ou o porto de Santos, destinos finais naquele janeiro de 1954.
O documentário como que refaz a travessia. Acompanha Ratto
ao terminal de Crociere. Testemunha encontros carregados de
afetividade. Um café com os amigos Nino e Luciano, com os quais
prestou serviço militar numa Itália sob regime fascista.
Conversa com o primo Corrado, que não via há meio século e
com o qual compartilha uma carta, emocionado. Vai ao colégio de
padres onde estudou. Recebe o
beijo e o sorriso maroto do comediante Dario Fo, no intervalo de
um ensaio.
Ouve as lembranças sinceras de
Nina Vinchi Grassi, 94, diretora-artística do Piccolo, sobre as parcerias nos primeiros anos do teatro fundado em 1947.
Edifícios como o Piccolo e o Alla
Scalla, ambos em Milão, e o Carlo
Felice, em Gênova, são revisitados
pelo homem que cultivou ali intimidade com a arquitetura cênica.
"Não existe cena tão importante
quanto o palco vazio. A partir daquele momento, tudo pode acontecer", afirma Ratto na película.
Ainda que, no fundo, entenda
como o edifício "ideal" a praça
pública, como aquela do Jardim
de Boboli, em Florença, onde participou da montagem de "A Tempestade", de Shakespeare, por
Strehler.
No filme, Ratto surge no mesmo
local, a descrever o cenário que o
marcou porque integrado à paisagem formada por lago, árvores,
esculturas e uma fonte.
Artesão do teatro
Salto para o Brasil. Depoimentos de Maria Della Costa, que conheceu Ratto durante viagem à
Itália, com o marido e empresário
Sandro Polloni, e o convidou para
dirigir "O Canto da Cotovia", de
Jean Anouilh.
Ratto se distinguia porque não
se fixava apenas nas inflexões de
voz para os atores, mas em sugestões mais construtivas para os
personagens, como confessa um
dos participantes da roda de veteranos do grupo carioca Teatro
dos Sete (1959-66), reunidos especialmente para o filme.
Outras vozes vão compondo o
perfil desse artesão do teatro que
não gosta de ser tratado por mestre: Millôr Fernandes, Tatiana
Memória (do extinto grupo Teatro Novo, que Ratto também dirigiu no Rio), Sérgio Britto, Ítalo
Rossi, Lauro César Muniz, Eduardo Tolentino, Celso Frateschi,
Umberto Magnani, Marcos Caruso, Ariclê Perez, Kalma Murtinho,
Ariela Goldmann etc.
Com produção da Homemadefilms (recém-criada por Greeb) e
da Tibet Filme, "Gianni Ratto" teve patrocínio inicial da Petrobras
e agora capta recursos para finalização. Deve estrear em 2005.
"Eu comi muito teatro na minha vida", deixa escapar Gianni
Ratto, sentado numa cadeira de
rodas (uma neuropatia afeta movimentos das mãos e dos pés, o
que não o impede de andar). A
frase e a cena foram gravadas justamente quando estava dentro de
um teatro italiano.
A fome de teatro continua. Há
pouco, criou a iluminação (ele é
um faz-tudo!) da premiada montagem de "Novas Diretrizes em
Tempos de Paz", texto de Bosco
Brasil. E segue na curadoria do
projeto Formação de Público da
Secretaria Municipal da Cultura,
em São Paulo.
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