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FERREIRA GULLAR
Erro necessário
A crise , que, sem dúvida,
continua, entrou num remanso. Aproveito, então, para
perguntar se a eleição do atual
presidente da República, fonte de
tão grave crise, foi um erro. Tendo
a admitir que sim, mas estou
igualmente convencido de que foi
uma necessidade: a partir de determinado momento, a sociedade
brasileira, na sua ampla maioria,
necessitou elegê-lo presidente da
República. O fato mesmo de que
isso só ocorreu a partir de determinado momento -e não antes- indica que a necessidade de
elegê-lo resultou de um processo,
não de uma fatalidade, ou seja, a
conjunção de fatores objetivos e
subjetivos tornou inevitável o que
antes era mera probabilidade.
Pode-se alegar que o mesmo terá acontecido com os outros candidatos que se tornaram presidentes, já que, se o povo os elegeu,
foi porque, para ele, a sua eleição
se tornou necessária, imprescindível. À primeira vista, parece
verdade, mas basta nos determos
no exame dos exemplos para verificar que há entre eles inegáveis
diferenças.
Tomemos, primeiro, a eleição
de Fernando Collor, que derrotou
Lula em 1989. Dois anos antes de
candidatar-se à Presidência da
República, Collor era praticamente desconhecido da maioria
do eleitorado brasileiro, não tinha uma história pública vinculada à história do país. Surgiu de
repente no cenário político ao se
eleger governador de Alagoas, como caçador de "marajás". Jovem
e bem-apessoado, aparentava firmeza nas suas convicções -convicções essas que não provocavam temores no eleitor, pois ele
prometia modernizar o país. Seu
adversário era Lula, que, ao contrário, com suas críticas radicais
ao sistema econômico e político,
com sua rudeza, chocava uma
grande parte da opinião pública:
despertava repulsa no empresariado, temor na classe média e incerteza nas classes mais pobres.
Entre um candidato e outro, o
mais fácil era escolher Collor
-não porque elegê-lo se tivesse
tornado uma necessidade, e sim
porque a opção era ele ou Lula.
Vejamos, agora, o outro exemplo -a eleição de Fernando Henrique Cardoso. Se este não era, como Collor, um desconhecido,
tampouco era um líder popular
de grande carisma e projeção.
FHC tornara-se conhecido no
país por sua atuação à frente do
Ministério da Fazenda no governo Itamar Franco e só ganhou popularidade quando implantou o
Plano Real, que deteve a inflação
galopante. Assim, foi como pai do
Plano Real que concorreu à Presidência da República, também
disputando com Lula. De novo, o
eleitor estava obrigado a escolher
entre um líder sindical raivoso e
um candidato que nenhum temor
provocava, e sim, pelo contrário,
inspirava confiança tanto por
suas atitudes moderadas, por seu
discurso claro e confiável como
-e sobretudo- porque dera
provas de competência ao acabar
com a inflação. Se seria exagero
dizer que foi Lula quem elegeu
Collor e Fernando Henrique, é
verdade, porém, que muita gente
votou num e noutro menos por
querê-los presidente do Brasil do
que por não querer Lula naquele
posto.
E, assim, chegamos ao pleito de
2002, quando o povo elegeu Lula
presidente da República com
mais de 52 milhões de votos. Por
que se até ali ele era rejeitado por
cerca de 70% dos eleitores? É que
tinha se tornado necessário elegê-lo.
Isso é o que intuo e vou tentar
explicar. Ao contrário de Collor e
Fernando Henrique, Lula surgiu
num momento dramático da vida política do país e atribuindo-se
uma missão redentora. Se é verdade que a repressão da ditadura
militar começava a arrefecer desde sua fragorosa derrota nas urnas em 1974, liderar movimentos
reivindicatórios dos trabalhadores era prova de coragem. Além
do mais, como a luta sindical tinha sido um dos principais alvos
da repressão ao deflagrar-se o golpe militar de 1964, a retomada
dessa luta confundia-se com a luta pelo restabelecimento da própria democracia. Esse papel foi
desempenhado por Lula e só não
o levou antes à chefia da nação
porque ele se mostrou contrário à
democracia possível que se implantou no país em 1985. Após
tantos anos de repressão e sofrimento, o povo desejava a pacificação e Lula pregava o inconformismo. É certo, porém, que três
campanhas eleitorais o tornaram
conhecido de todo o povo brasileiro: um torneiro mecânico, sem
um dedo, que fundara e liderava
um dos mais importantes partidos políticos do Brasil. Não elegê-lo de novo era então um preconceito e um temor. Por isso, quando ele se mudou em sorridente e
simpático, falando manso e tolerante, sua eleição tornou-se inevitável: a esperança venceu o medo,
e a sociedade livrou-se de uma
culpa. O que era necessário acontecer aconteceu.
Será que, depois de ter purgado
essa culpa, o povo brasileiro o elegeria outra vez?
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