São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2006

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GUILHERME WISNIK

As entranhas do capital


As torres encarnavam a funcionalidade anônima do capitalismo, a razão abstrata do império global

MUITO JÁ se falou sobre o caráter inaugural dos atentados de 11 de setembro de 2001: o "primeiro dia do século", a abertura em fúria de uma era nova, marcada por guerras intestinas e sem antagonistas claros, mas, ao mesmo tempo, superexpostas como espetáculo midiático. Era nova e sem contorno, que parecia imediatamente substituir a discussão em torno do pós-modernismo, àquela altura já envelhecida. No entanto, há uma curiosa coincidência que merece comentário: as torres gêmeas de Nova York, símbolo do capitalismo financeiro, foram projetadas por Minoru Yamasaki, o mesmo arquiteto cuja obra uma vez implodida marca o início do chamado pós-modernismo. Refiro-me ao conjunto habitacional Pruitt-Igoe, em Saint-Louis, demolido em 1972, como emblema de um modelo que teria produzido degradação social. É no mínimo sui generis a situação desse arquiteto nipo-americano autor de projetos entre corretos e burocráticos, e predestinado a sempre inaugurar novas eras através da demolição monumental de suas obras.
A cada 11 de setembro, inúmeras imagens daqueles ataques são reprisadas à exaustão. Na época, um trauma de tamanhas proporções só podia parecer irreal, ou pára-real, dada, inclusive, sua proximidade perturbadora com a indústria cultural e a arte. Refiro-me tanto ao universo fantástico dos filmes de catástrofe americanos, quanto, por exemplo, à semelhança entre as pessoas e carros cobertos por poeira e o ultra-realismo dos clones humanos de poliéster de Duane Hanson, ou entre a cratera de ruínas e as enormes telas de Anselm Kiefer, com paisagens urbanas vistas como entranhas carbonizadas.
Pode parecer paradoxal, mas é com anestesia eufórica que muita gente (como eu) via o avião diante do prédio como se fosse uma mosca, assim como, depois, os urubus em meio ao entulho. Essa impossibilidade de reter a escala das coisas é que virtualiza a nossa experiência da realidade, mais do que o próprio fato de vê-las em telas de TV ou fotografias. Nesse sentido é que os atentados, apesar de agirem no centro do círculo midiático da "sociedade do espetáculo", realizam uma operação contrária a ela. Num instante, o fogo derretendo as fachadas das torres fazia com que estas parecessem peles supurando. E depois, a enorme quantidade de papel no ar após a queda dos prédios, dava alguma consistência material à virtualidade do que eles representavam: ações, contratos, títulos, capital flutuante.
É certo dizer que as torres encarnavam a funcionalidade anônima do capitalismo, a razão abstrata do império global. Mas em meio aos escombros, as placas soltas das suas antigas fachadas com motivos ogivais antes imperceptíveis parecem catedrais góticas. Realizações monumentais do anti-sublime, os ataques devolveram em alguma medida, e mesmo que de forma passageira, realidade ao mundo contemporâneo. Mas é apenas com o tempo que começamos a perceber isso, já que as suas imagens, ao contrário do que se esperava, parecem resistir miraculosamente à banalização do consumo.


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