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GUILHERME WISNIK
As entranhas do capital
As torres encarnavam a funcionalidade anônima do capitalismo, a razão abstrata do império global
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MUITO JÁ se falou sobre o caráter inaugural dos atentados de 11 de setembro de
2001: o "primeiro dia do século", a
abertura em fúria de uma era nova,
marcada por guerras intestinas e
sem antagonistas claros, mas, ao
mesmo tempo, superexpostas como
espetáculo midiático. Era nova e
sem contorno, que parecia imediatamente substituir a discussão em
torno do pós-modernismo, àquela
altura já envelhecida. No entanto, há
uma curiosa coincidência que merece comentário: as torres gêmeas de
Nova York, símbolo do capitalismo
financeiro, foram projetadas por
Minoru Yamasaki, o mesmo arquiteto cuja obra uma vez implodida
marca o início do chamado pós-modernismo. Refiro-me ao conjunto
habitacional Pruitt-Igoe, em Saint-Louis, demolido em 1972, como emblema de um modelo que teria produzido degradação social. É no mínimo sui generis a situação desse arquiteto nipo-americano autor de
projetos entre corretos e burocráticos, e predestinado a sempre inaugurar novas eras através da demolição monumental de suas obras.
A cada 11 de setembro, inúmeras
imagens daqueles ataques são reprisadas à exaustão. Na época, um trauma de tamanhas proporções só podia parecer irreal, ou pára-real, dada,
inclusive, sua proximidade perturbadora com a indústria cultural e a
arte. Refiro-me tanto ao universo
fantástico dos filmes de catástrofe
americanos, quanto, por exemplo, à
semelhança entre as pessoas e carros cobertos por poeira e o ultra-realismo dos clones humanos de poliéster de Duane Hanson, ou entre a cratera de ruínas e as enormes telas de
Anselm Kiefer, com paisagens urbanas vistas como entranhas carbonizadas.
Pode parecer paradoxal, mas é
com anestesia eufórica que muita
gente (como eu) via o avião diante
do prédio como se fosse uma mosca,
assim como, depois, os urubus em
meio ao entulho. Essa impossibilidade de reter a escala das coisas é
que virtualiza a nossa experiência da
realidade, mais do que o próprio fato
de vê-las em telas de TV ou fotografias. Nesse sentido é que os atentados, apesar de agirem no centro do
círculo midiático da "sociedade do
espetáculo", realizam uma operação
contrária a ela. Num instante, o fogo
derretendo as fachadas das torres
fazia com que estas parecessem peles supurando. E depois, a enorme
quantidade de papel no ar após a
queda dos prédios, dava alguma
consistência material à virtualidade
do que eles representavam: ações,
contratos, títulos, capital flutuante.
É certo dizer que as torres encarnavam a funcionalidade anônima do
capitalismo, a razão abstrata do império global. Mas em meio aos escombros, as placas soltas das suas
antigas fachadas com motivos ogivais antes imperceptíveis parecem
catedrais góticas. Realizações monumentais do anti-sublime, os ataques devolveram em alguma medida, e mesmo que de forma passageira, realidade ao mundo contemporâneo. Mas é apenas com o tempo
que começamos a perceber isso, já
que as suas imagens, ao contrário do
que se esperava, parecem resistir
miraculosamente à banalização do
consumo.
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