São Paulo, segunda-feira, 18 de setembro de 2006

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NELSON ASCHER

Roma


Série da HBO sai em DVD nos EUA e não se reduz ao que poderia ser só um "docudrama"

A PRIMEIRA obra-prima narrativa do século 21, a série "Roma", da HBO, cuja primeira temporada (12 capítulos) acaba de ser lançada em DVD nos EUA, retoma uma história que tem fascinado o Ocidente desde os dias remotos, quando estava originalmente ocorrendo.
Desde suas testemunhas oculares, que foram também protagonistas do drama e eram dois dos maiores prosadores que a língua latina já teve, Júlio César e Cícero, passando por poetas como Lucano e historiadores como Suetônio ou Plutarco até culminar em William Shakespeare e suas tragédias, reaparecendo desde então em inumeráveis livros e pinturas, dramas e filmes, a crise que acarretou a queda da república romana, transformando-a num principado, não cessou, geração após geração, de ser tematizada.
Seus principais personagens, conhecidos tanto pelos especialistas quanto pelo grande público das superproduções hollywoodianas, gente como o próprio Júlio César, Marco Antônio, Otávio, Pompeu, Cícero, Bruto e Cleópatra, entre outros, pertencem concomitantemente à história, à ficção e, acima disso tudo, ao arquétipo. Do que? Da primeira e, quem sabe da melhor intriga política que se conhece, aquela cujos objetivos, ambições e lealdades fazem sentido até hoje e são inteligíveis em nossos termos. Pois eles emergem tridimensionais das trevas do tempo, complexos, tão claros como enigmáticos, carregados, em doses que cada intérprete lhes atribui de acordo com suas luzes e sua própria política, de cinismo e idealismo.
Trata-se da primeira disputa mundial pelo poder que envolvia uma grande potência, suas complexidades internas e ações externas, as classes altas e o povo, os cidadãos e os estrangeiros, o centro e a periferia, num império que era, até para nossos padrões, universal. Há tantos prismas possíveis através dos quais abordá-la que, a cada nova tentativa, em vez de se esgotar, sua história se enriquece e acaba nos falando não só sobre o passado como sobre as constantes da natureza humana.
A série da HBO comprova que essa velha história ainda pode ter o mesmo "punch" que exibira nas versões mais felizes. Vários problemas se colocaram para seus produtores e tanto reconhecê-los como equacioná-los resultaram numa obra superior que, explorando com talento os recursos de que uma narrativa televisiva dispõe, responde à questão central: como recontar pela enésima vez uma trama conhecida, ainda mais em dias nos quais, por um lado, o levantamento dos fatos chegou a refinamentos notáveis e, por outro, as parcelas exigentes do público e da crítica, que têm acesso fácil a estes, jamais abririam mão de cotejá-los com a ficção a que servem, nem perdoariam manipulações gratuitas?
Para que "Roma" não se reduzisse a um "docudrama" tedioso que fizesse das minúcias sua virtude enquanto, com a desculpa do didatismo, se perderia nelas, uma dose substancial de suspense, algumas indagações tinham de ficar no ar e, aliás, era melhor que elas só se formulassem aos poucos. A verossimilhança impedia que os fatos fossem alterados, nem havia como inserir, na trama principal, mais do que uma quantidade mínima de personagens imaginários. Uma vez que os acontecimentos que formam a trama excluíam, por sua própria natureza, o suspense, a série o transferiu para a estrutura mesma da narrativa.
Assim, entre as perguntas que se colocam, são respondidas, discutidas, depois postas em dúvida ou refutadas estão, para começar, as que dizem respeito ao caráter e objetivos de Júlio César. Tampouco são lineares, transparentes e unívocos os dos que conspiram contra ele, envolvendo desde a oposição política legítima à vingança amorosa. "Roma" se subdivide em dois planos narrativos: o da classes altas que encenam a "grande história" e a das classes subalternas, representadas por dois legionários ficcionais que, numa dupla formada de opostos complementares como se fossem Asterix e Obelix romanos, ilustram a história da vida privada ou cotidiana.
A cidade rumo à qual todos os caminhos levavam é mostrada em toda sua beleza e sujeira, com monumentos magníficos e porcos na rua. Os romanos de dois milênios atrás são seres humanos familiares, embora acreditem em deuses diferentes, sigam outras religiões e comam, às vezes, pratos nojentos. Sobretudo os eventos famosos são descritos como uma mistura convincente de intenção e acaso, de modo que quem a assista com atenção obterá uma perspectiva mais plausível da história e da política do que aquela oferecida pelos jornais ou pelas doutrinas correntes.

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