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NELSON ASCHER
Roma
Série da HBO sai em DVD nos EUA e não se reduz ao que poderia ser só um "docudrama"
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A PRIMEIRA obra-prima narrativa do século 21, a série "Roma", da HBO, cuja primeira
temporada (12 capítulos) acaba de
ser lançada em DVD nos EUA, retoma uma história que tem fascinado
o Ocidente desde os dias remotos,
quando estava originalmente ocorrendo.
Desde suas testemunhas oculares,
que foram também protagonistas do
drama e eram dois dos maiores prosadores que a língua latina já teve,
Júlio César e Cícero, passando por
poetas como Lucano e historiadores
como Suetônio ou Plutarco até culminar em William Shakespeare e
suas tragédias, reaparecendo desde
então em inumeráveis livros e pinturas, dramas e filmes, a crise que
acarretou a queda da república romana, transformando-a num principado, não cessou, geração após geração, de ser tematizada.
Seus principais personagens, conhecidos tanto pelos especialistas
quanto pelo grande público das superproduções hollywoodianas, gente como o próprio Júlio César, Marco Antônio, Otávio, Pompeu, Cícero,
Bruto e Cleópatra, entre outros, pertencem concomitantemente à história, à ficção e, acima disso tudo, ao
arquétipo. Do que? Da primeira e,
quem sabe da melhor intriga política que se conhece, aquela cujos objetivos, ambições e lealdades fazem
sentido até hoje e são inteligíveis em
nossos termos. Pois eles emergem
tridimensionais das trevas do tempo, complexos, tão claros como
enigmáticos, carregados, em doses
que cada intérprete lhes atribui de
acordo com suas luzes e sua própria
política, de cinismo e idealismo.
Trata-se da primeira disputa
mundial pelo poder que envolvia
uma grande potência, suas complexidades internas e ações externas, as
classes altas e o povo, os cidadãos e
os estrangeiros, o centro e a periferia, num império que era, até para
nossos padrões, universal. Há tantos
prismas possíveis através dos quais
abordá-la que, a cada nova tentativa,
em vez de se esgotar, sua história se
enriquece e acaba nos falando não
só sobre o passado como sobre as
constantes da natureza humana.
A série da HBO comprova que essa velha história ainda pode ter o
mesmo "punch" que exibira nas versões mais felizes. Vários problemas
se colocaram para seus produtores e
tanto reconhecê-los como equacioná-los resultaram numa obra superior que, explorando com talento os
recursos de que uma narrativa televisiva dispõe, responde à questão
central: como recontar pela enésima
vez uma trama conhecida, ainda
mais em dias nos quais, por um lado,
o levantamento dos fatos chegou a
refinamentos notáveis e, por outro,
as parcelas exigentes do público e da
crítica, que têm acesso fácil a estes,
jamais abririam mão de cotejá-los
com a ficção a que servem, nem perdoariam manipulações gratuitas?
Para que "Roma" não se reduzisse
a um "docudrama" tedioso que fizesse das minúcias sua virtude enquanto, com a desculpa do didatismo, se perderia nelas, uma dose
substancial de suspense, algumas
indagações tinham de ficar no ar e,
aliás, era melhor que elas só se formulassem aos poucos. A verossimilhança impedia que os fatos fossem
alterados, nem havia como inserir,
na trama principal, mais do que uma
quantidade mínima de personagens
imaginários. Uma vez que os acontecimentos que formam a trama excluíam, por sua própria natureza, o
suspense, a série o transferiu para a
estrutura mesma da narrativa.
Assim, entre as perguntas que se
colocam, são respondidas, discutidas, depois postas em dúvida ou refutadas estão, para começar, as que
dizem respeito ao caráter e objetivos
de Júlio César. Tampouco são lineares, transparentes e unívocos os dos
que conspiram contra ele, envolvendo desde a oposição política legítima
à vingança amorosa. "Roma" se subdivide em dois planos narrativos: o
da classes altas que encenam a
"grande história" e a das classes subalternas, representadas por dois legionários ficcionais que, numa dupla formada de opostos complementares como se fossem Asterix e
Obelix romanos, ilustram a história
da vida privada ou cotidiana.
A cidade rumo à qual todos os caminhos levavam é mostrada em toda sua beleza e sujeira, com monumentos magníficos e porcos na rua.
Os romanos de dois milênios atrás
são seres humanos familiares, embora acreditem em deuses diferentes, sigam outras religiões e comam,
às vezes, pratos nojentos. Sobretudo
os eventos famosos são descritos como uma mistura convincente de intenção e acaso, de modo que quem a
assista com atenção obterá uma
perspectiva mais plausível da história e da política do que aquela oferecida pelos jornais ou pelas doutrinas
correntes.
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