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CRÍTICA ROMANCE
"Sobressalto" tem efeito de estada no inferno
Cook constrói pequena obra-prima com rigor da concentração cenográfica no semideserto e "timing" narrativo
ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA
A despeito da tradução um
pouco dura e algumas gralhas da edição, a Grua Livros,
editora recém-fundada em
São Paulo, parece ter faro:
"Sobressalto", romance de
1961 do escritor e jornalista
australiano Kenneth Cook
(1929-1987), é uma pequena
obra-prima.
Não que seja um livro sem
defeitos: o que ocorre é que,
em algum momento, no conjunto coeso do romance, os
defeitos simplesmente deixam de ter importância.
Como nota Peter Temple,
no posfácio do livro, "é o trabalho de um jovem escritor:
romântico, em certos momentos ingênuo. Ele também
sofre de alguma incerteza de
estilo e há problemas de
equilíbrio."
A conclusão, porém, é que
as falhas "são sobrepujadas
pelas forças do escritor".
O que torna o livro tão notável, pois? Cito duas razões,
as quais, articuladas, dão-lhe uma formidável eficácia.
A primeira é o rigor de sua
concentração cenográfica,
na qual o árido do semideserto ("outback") australiano se
torna não apenas uma referência do enunciado, mas
uma presença constante,
opressiva, absoluta.
A segunda razão diz respeito ao maravilhoso "timing" narrativo, o processo
pelo qual, paulatinamente,
mas também sem demora,
quase sem que se perceba, o
livro logre produzir convincentemente o efeito de uma
estada no inferno.
Não é apenas o inferno de
calor e poeira, da sede indomada por baldes de cerveja;
nem sequer o inferno da desolação perversa e estranhamente sensual do deserto.
Trata-se de um passo na
direção de um círculo mais
fundo e muito mais sórdido:
lá onde a idiotia, a crueldade
e a barbárie engendram possessão demoníaca e orgia
sanguinária.
PERDIDO NOS CAFUNDÓS
Andando perdido em si,
pensando tratar-se apenas
do deserto à sua volta, John
Grant, o professor de Sidney
que se vê obrigado a lecionar
no semiárido australiano,
descobre que o cenário caipira que ele desprezava, como
homem razoavelmente culto
da classe média urbana, não
é sequer a pior imagem do cenário de sua própria vida interior, que ele desconhecia
completamente.
Sidney, por sua vez, não
está tão longe de Tiboonda
ou de Yabba, como, parece,
acreditava singelamente, ao
fim de seu primeiro período
de professor nos cafundós da
Austrália.
É isso o que ele vai aprender na própria pele. Ou melhor, uma vez que isso não se
pode de fato aprender, é o
que ele vai desgraçadamente
testemunhar com a sua própria abjeção.
Quanto ao leitor, a certa altura, com um susto, descobre
que foi inteiramente realizada a maldição que serve de
epígrafe e título ao livro:
"May you dream of the Devil
and wake in fright" ["que você sonhe com o Diabo e desperte em pavor"].
ALCIR PÉCORA é professor de teoria
literária na Unicamp.
SOBRESSALTO
AUTOR Kenneth Cook
TRADUÇÃO Maria Alice Stock
EDITORA Grua Livros
QUANTO R$ 36 (176 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo
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