São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

"Sobressalto" tem efeito de estada no inferno

Cook constrói pequena obra-prima com rigor da concentração cenográfica no semideserto e "timing" narrativo

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A despeito da tradução um pouco dura e algumas gralhas da edição, a Grua Livros, editora recém-fundada em São Paulo, parece ter faro: "Sobressalto", romance de 1961 do escritor e jornalista australiano Kenneth Cook (1929-1987), é uma pequena obra-prima.
Não que seja um livro sem defeitos: o que ocorre é que, em algum momento, no conjunto coeso do romance, os defeitos simplesmente deixam de ter importância. Como nota Peter Temple, no posfácio do livro, "é o trabalho de um jovem escritor: romântico, em certos momentos ingênuo. Ele também sofre de alguma incerteza de estilo e há problemas de equilíbrio."
A conclusão, porém, é que as falhas "são sobrepujadas pelas forças do escritor". O que torna o livro tão notável, pois? Cito duas razões, as quais, articuladas, dão-lhe uma formidável eficácia.
A primeira é o rigor de sua concentração cenográfica, na qual o árido do semideserto ("outback") australiano se torna não apenas uma referência do enunciado, mas uma presença constante, opressiva, absoluta.
A segunda razão diz respeito ao maravilhoso "timing" narrativo, o processo pelo qual, paulatinamente, mas também sem demora, quase sem que se perceba, o livro logre produzir convincentemente o efeito de uma estada no inferno.
Não é apenas o inferno de calor e poeira, da sede indomada por baldes de cerveja; nem sequer o inferno da desolação perversa e estranhamente sensual do deserto. Trata-se de um passo na direção de um círculo mais fundo e muito mais sórdido: lá onde a idiotia, a crueldade e a barbárie engendram possessão demoníaca e orgia sanguinária.

PERDIDO NOS CAFUNDÓS
Andando perdido em si, pensando tratar-se apenas do deserto à sua volta, John Grant, o professor de Sidney que se vê obrigado a lecionar no semiárido australiano, descobre que o cenário caipira que ele desprezava, como homem razoavelmente culto da classe média urbana, não é sequer a pior imagem do cenário de sua própria vida interior, que ele desconhecia completamente.
Sidney, por sua vez, não está tão longe de Tiboonda ou de Yabba, como, parece, acreditava singelamente, ao fim de seu primeiro período de professor nos cafundós da Austrália.
É isso o que ele vai aprender na própria pele. Ou melhor, uma vez que isso não se pode de fato aprender, é o que ele vai desgraçadamente testemunhar com a sua própria abjeção.
Quanto ao leitor, a certa altura, com um susto, descobre que foi inteiramente realizada a maldição que serve de epígrafe e título ao livro: "May you dream of the Devil and wake in fright" ["que você sonhe com o Diabo e desperte em pavor"].

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp.


SOBRESSALTO

AUTOR Kenneth Cook
TRADUÇÃO Maria Alice Stock
EDITORA Grua Livros
QUANTO R$ 36 (176 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo




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