São Paulo, Segunda-feira, 18 de Outubro de 1999
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LITERATURA
Poetisa fez textos como sendo dele
No fim, João Cabral teve ajuda da mulher

CRISTINA GRILLO
da Sucursal do Rio

Nos últimos anos de sua vida, o poeta João Cabral de Melo Neto (1920-1999) recebeu o auxílio de sua mulher, a poetisa Marly de Oliveira, que escreveu alguns dos textos em prosa tidos como de autoria do escritor pernambucano.
A poetisa, casada com João Cabral havia 13 anos, disse à Folha ter começado a escrever os textos para o poeta quando a doença degenerativa que o levou à cegueira começou a se agravar. "Queria ajudar o João, para parecer que ele ainda estava em atividade", disse Marly de Oliveira.
A poetisa, ganhadora do prêmio Jabuti de poesia em 1998 por seu livro "O Mar de Permeio", disse ser "muito difícil" explicar "a situação de uma pessoa que não enxerga e que tem certas idéias".
Por ver a dificuldade do marido, que morreu no último dia 9, em lidar com a cegueira e com a depressão, decidiu ajudá-lo. A Folha apurou, com amigos do casal, que um dos textos escritos por Marly de Oliveira como se fosse de autoria de João Cabral de Melo Neto foi o discurso de agradecimento feito pelo escritor ao receber o Prêmio Camões, em 1990.
O Prêmio Camões é considerado o mais importante concedido a escritores de língua portuguesa -o equivalente ao Prêmio Cervantes, dado a escritores de língua espanhola. Seu ganhador é escolhido anualmente por uma comissão formada por intelectuais e representantes dos governos do Brasil e de Portugal.
A viúva do escritor não revela quais outros textos escreveu para João Cabral, mas diz que amigos testemunharam algumas situações nas quais ela o substituiu.
"Ninguém nunca comentou isso. A Rachel de Queiróz (escritora, membro da ABL) viu. Ele estava muito mal, você não sabe como foram os últimos anos de João. Havia coisas que ele não podia fazer mesmo. E eu dava essa ajuda", disse.
Ao conversar com a Folha, na sexta-feira, Marly de Oliveira chorou muito. Disse ter receio de que a revelação de que escreveu alguns dos textos de João Cabral possa causar "escândalo".
"Muita gente nunca soube que ele esteve tão mal. Eu o poupei de tudo possível. Ele era um homem cego, doente, a quem eu tentei ajudar, sobretudo dar algum ânimo, criando sempre um projeto de vida para ele", disse.
Marly de Oliveira é autora de 18 livros de poesia. É considerada por críticos um nome importante na poesia brasileira contemporânea, mas que teve seu trabalho ofuscado pela importância da obra de João Cabral de Melo Neto.
Não são muitos os que conhecem seu trabalho como poetisa, deixado um pouco de lado nos últimos anos de vida do marido.
Por isso, Marly de Oliveira disse temer que a revelação de sua participação em alguns dos textos do marido cause "uma generalização" -ou seja, que se passe a achar que todo o trabalho feito pelo marido nos últimos anos seja, na verdade, de sua autoria.
Marly explica que escreveu, além de discursos, textos de apresentação e de agradecimento. Segundo ela, os amigos mais próximos do casal sabiam disso.
A informação é confirmada por um amigo de Marly e João Cabral, que pede para não ser identificado. Segundo ele, a poetisa costumava comentar quais textos escrevia em nome do marido. Marly nunca teria comentado, de acordo com esse amigo, ter escrito poemas em nome de João Cabral.
Um crítico literário ouvido pela Folha afirmou que, como a produção poética de João Cabral nos anos 90 foi muito pequena, não tem sido possível fazer uma verificação para determinar se há a possibilidade de algum dos poemas de sua autoria ter sido, de fato, escrito pela mulher.
De acordo com o crítico, no entanto, a cumplicidade entre o casal era tão forte que a possibilidade não o surpreenderia.


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