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LITERATURA
Poetisa fez textos como sendo dele
No fim, João Cabral
teve ajuda da mulher
CRISTINA GRILLO
da Sucursal do Rio
Nos últimos anos de sua vida, o
poeta João Cabral de Melo Neto
(1920-1999) recebeu o auxílio de
sua mulher, a poetisa Marly de
Oliveira, que escreveu alguns dos
textos em prosa tidos como de autoria do escritor pernambucano.
A poetisa, casada com João Cabral havia 13 anos, disse à Folha
ter começado a escrever os textos
para o poeta quando a doença degenerativa que o levou à cegueira
começou a se agravar. "Queria
ajudar o João, para parecer que
ele ainda estava em atividade",
disse Marly de Oliveira.
A poetisa, ganhadora do prêmio
Jabuti de poesia em 1998 por seu
livro "O Mar de Permeio", disse
ser "muito difícil" explicar "a situação de uma pessoa que não enxerga e que tem certas idéias".
Por ver a dificuldade do marido,
que morreu no último dia 9, em lidar com a cegueira e com a depressão, decidiu ajudá-lo. A Folha apurou, com amigos do casal,
que um dos textos escritos por
Marly de Oliveira como se fosse
de autoria de João Cabral de Melo
Neto foi o discurso de agradecimento feito pelo escritor ao receber o Prêmio Camões, em 1990.
O Prêmio Camões é considerado o mais importante concedido a
escritores de língua portuguesa
-o equivalente ao Prêmio Cervantes, dado a escritores de língua
espanhola. Seu ganhador é escolhido anualmente por uma comissão formada por intelectuais e
representantes dos governos do
Brasil e de Portugal.
A viúva do escritor não revela
quais outros textos escreveu para
João Cabral, mas diz que amigos
testemunharam algumas situações nas quais ela o substituiu.
"Ninguém nunca comentou isso. A Rachel de Queiróz (escritora, membro da ABL) viu. Ele estava muito mal, você não sabe como foram os últimos anos de
João. Havia coisas que ele não podia fazer mesmo. E eu dava essa
ajuda", disse.
Ao conversar com a Folha, na
sexta-feira, Marly de Oliveira chorou muito. Disse ter receio de que
a revelação de que escreveu alguns dos textos de João Cabral
possa causar "escândalo".
"Muita gente nunca soube que
ele esteve tão mal. Eu o poupei de
tudo possível. Ele era um homem
cego, doente, a quem eu tentei
ajudar, sobretudo dar algum ânimo, criando sempre um projeto
de vida para ele", disse.
Marly de Oliveira é autora de 18
livros de poesia. É considerada
por críticos um nome importante
na poesia brasileira contemporânea, mas que teve seu trabalho
ofuscado pela importância da
obra de João Cabral de Melo Neto.
Não são muitos os que conhecem seu trabalho como poetisa,
deixado um pouco de lado nos últimos anos de vida do marido.
Por isso, Marly de Oliveira disse
temer que a revelação de sua participação em alguns dos textos do
marido cause "uma generalização" -ou seja, que se passe a
achar que todo o trabalho feito
pelo marido nos últimos anos seja, na verdade, de sua autoria.
Marly explica que escreveu,
além de discursos, textos de apresentação e de agradecimento. Segundo ela, os amigos mais próximos do casal sabiam disso.
A informação é confirmada por
um amigo de Marly e João Cabral,
que pede para não ser identificado. Segundo ele, a poetisa costumava comentar quais textos escrevia em nome do marido. Marly
nunca teria comentado, de acordo com esse amigo, ter escrito
poemas em nome de João Cabral.
Um crítico literário ouvido pela
Folha afirmou que, como a produção poética de João Cabral nos
anos 90 foi muito pequena, não
tem sido possível fazer uma verificação para determinar se há a
possibilidade de algum dos poemas de sua autoria ter sido, de fato, escrito pela mulher.
De acordo com o crítico, no entanto, a cumplicidade entre o casal era tão forte que a possibilidade não o surpreenderia.
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