São Paulo, sexta-feira, 18 de outubro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

A casa das janelas verdes e cerradas

Custou-me reconhecer o caminho, só sabia que ali já estivera há muito, muito tempo, e que ao virar a próxima curva, veria a casa pintada de branco, as janelas verdes e cerradas. Olhei o relógio: 5h da tarde. Chegara atrasado, mas chegara. Todos me perdoariam, afinal, era o único que morava longe, pegara o trânsito pesado da cidade e os 120 quilômetros da BR 121. Podia ter arranjado uma desculpa para faltar ao encontro, mas o telefonema de Mara, pouco depois do almoço, me deu vontade de vê-la e, ao mesmo tempo, de conhecer melhor o seu atual marido.
- Venha desarmado -pediu ela.
- Nunca ando armado, você sabe, nunca tive uma arma.
Ela riu:
- Não, não é isso, venha apenas numa boa, sem raiva de mim nem dele. Seremos amigos, como antigamente.
Como antigamente. Mara foi minha primeira mulher, éramos parentes afastados e sempre nos gostamos, desde a infância, quando nos trancávamos no porão do velho sobrado que pertencera ao barão da Saúde e que o pai dela comprara para ali construir um prédio.
Do porão, passamos para a cama da empregada e, depois, para a própria cama dela, que, já mocinha, deixava aberta a porta para que eu entrasse -eu morava ao lado, bastava pular o pequeno muro que separava nossos quintais.
E, de cama em cama, nem houve emoção especial quando estreamos a chippendale, móvel da época, dos anos 50, cama, dois armários, duas mesinhas de cabeceira, cômoda e penteadeira espelhada, com dois castiçais de cristal iluminando os vidrinhos de perfume francês de que ela tanto gostava.
Um dia, esbarrei na penteadeira e um dos vidrinhos se partiu ao cair. O cheiro se espalhou pelo quarto. "Un air embaumé" era o preferido dela. De repente, sem relação de causa e efeito, Mara me avisou: "Sonhei que você me matava e que havia um cheiro estranho no ar. Não, não era de perfume francês, era um cheiro de campo, de árvores e de grama, uma casa de campo isolada de janelas verdes".
Não entendi por que ela me contava aquele sonho, que em si nada tinha de extraordinário. Nunca dei bola para os meus sonhos, não daria para os dela. Mesmo assim, sempre que sentia um perfume muito forte em alguém ou em algum lugar, lembrava aquele dia, aquele vidrinho caindo no chão, o cheiro que se espalhou pelo quarto.
Pouco depois, nós nos separamos. Eu andei com uma e com outra, ela com um e com outro, mas logo se fixou num belga do tamanho e da grossura de um armário, bom sujeito, que ria muito e dava assistência técnica a uma empresa que explorava minério de ferro em Minas. Era rico ou, pelo menos, ganhava bem. Não gostava de cidade, foi morar fora, visitei-os uma só vez, já fazia tempo -afinal, continuava amigo de Mara e o belga me aceitou porque aceitava muitas coisas, era realmente um bom sujeito.
Conheciamo-nos pouco, mas ele me recebeu com jovialidade e, sabendo que Mara me convidara para passar o fim de semana, viera ao telefone e me deixara à vontade: "Venha, terei um casal amigo para companhia, beberemos juntos, jogaremos tranca e teremos uma noite maravilhosa".
De fato, a noite foi maravilhosa. O casal amigo era belga também, chegara havia pouco ao Brasil, a mulher falava um português miserável e o marido não falava nada, somente ria de tudo, com uma cara simpática e boçal.
Bebemos, jogamos tranca e, no final da noite, quando já íamos dormir, o marido de Mara ofereceu-a ao amigo: "Durma com ela, eu dormirei com a sua".
Para meu espanto, Mara deu a mão ao cara, beijou-me no rosto, despedindo-se, depois beijou o marido. Deu um tchau breve para a mulher do homem com quem ia dormir.
Logo fiquei sozinho, pois o marido de Mara também levou sua companheira para o quarto. Achei tudo aquilo estranho, tudo parecia combinado, até mesmo me deixarem sozinho numa casa que eu mal conhecia. Compreendi que devia haver um sentido naquilo tudo e que o sentido dependia de mim. Dois casais se amando e eu sozinho, testemunhando. Para piorar, a mulher que fora minha e que eu, de certa forma, ainda amava fora para a cama com um homem que ela acabara de conhecer.
Já ia para o meu quarto quando senti um cheiro conhecido. "Un air embaumé". O perfume preferido de Mara. Ela o usava sempre que desejava um prazer mais intenso ou mais depravado.
Lembrei que ela me pedira para ir desarmado. O que significava aquilo tudo? Estaria tudo combinado, até a minha presença, desnecessária ou necessária? Ia pensar em fazer qualquer coisa, não sabia o quê, quando o telefone tocou. Tocou a distância e continuou tocando, cada vez mais perto, até que me acordou.
Era Mara. Alegremente, ela me convidou para passar o fim de semana com eles. Espantei o sonho que começava a me angustiar e peguei o carro, sabia vagamente onde moravam. Custou-me reconhecer o caminho, só sabia que ali estivera há muito, muito tempo, e que, ao virar a próxima curva, veria a casa pintada de branco, as janelas verdes e cerradas.


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