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CARLOS HEITOR CONY
A casa das janelas verdes e cerradas
Custou-me reconhecer o
caminho, só sabia que ali já
estivera há muito, muito tempo, e
que ao virar a próxima curva, veria a casa pintada de branco, as
janelas verdes e cerradas. Olhei o
relógio: 5h da tarde. Chegara
atrasado, mas chegara. Todos me
perdoariam, afinal, era o único
que morava longe, pegara o trânsito pesado da cidade e os 120 quilômetros da BR 121. Podia ter arranjado uma desculpa para faltar
ao encontro, mas o telefonema de
Mara, pouco depois do almoço,
me deu vontade de vê-la e, ao
mesmo tempo, de conhecer melhor o seu atual marido.
- Venha desarmado -pediu
ela.
- Nunca ando armado, você
sabe, nunca tive uma arma.
Ela riu:
- Não, não é isso, venha apenas numa boa, sem raiva de mim
nem dele. Seremos amigos, como
antigamente.
Como antigamente. Mara foi
minha primeira mulher, éramos
parentes afastados e sempre nos
gostamos, desde a infância, quando nos trancávamos no porão do
velho sobrado que pertencera ao
barão da Saúde e que o pai dela
comprara para ali construir um
prédio.
Do porão, passamos para a cama da empregada e, depois, para
a própria cama dela, que, já mocinha, deixava aberta a porta para que eu entrasse -eu morava
ao lado, bastava pular o pequeno
muro que separava nossos quintais.
E, de cama em cama, nem houve emoção especial quando estreamos a chippendale, móvel da
época, dos anos 50, cama, dois armários, duas mesinhas de cabeceira, cômoda e penteadeira espelhada, com dois castiçais de cristal iluminando os vidrinhos de
perfume francês de que ela tanto
gostava.
Um dia, esbarrei na penteadeira e um dos vidrinhos se partiu ao
cair. O cheiro se espalhou pelo
quarto. "Un air embaumé" era o
preferido dela. De repente, sem
relação de causa e efeito, Mara
me avisou: "Sonhei que você me
matava e que havia um cheiro estranho no ar. Não, não era de perfume francês, era um cheiro de
campo, de árvores e de grama,
uma casa de campo isolada de janelas verdes".
Não entendi por que ela me
contava aquele sonho, que em si
nada tinha de extraordinário.
Nunca dei bola para os meus sonhos, não daria para os dela.
Mesmo assim, sempre que sentia
um perfume muito forte em alguém ou em algum lugar, lembrava aquele dia, aquele vidrinho
caindo no chão, o cheiro que se espalhou pelo quarto.
Pouco depois, nós nos separamos. Eu andei com uma e com
outra, ela com um e com outro,
mas logo se fixou num belga do
tamanho e da grossura de um armário, bom sujeito, que ria muito
e dava assistência técnica a uma
empresa que explorava minério
de ferro em Minas. Era rico ou,
pelo menos, ganhava bem. Não
gostava de cidade, foi morar fora,
visitei-os uma só vez, já fazia tempo -afinal, continuava amigo de
Mara e o belga me aceitou porque
aceitava muitas coisas, era realmente um bom sujeito.
Conheciamo-nos pouco, mas ele
me recebeu com jovialidade e, sabendo que Mara me convidara
para passar o fim de semana, viera ao telefone e me deixara à vontade: "Venha, terei um casal amigo para companhia, beberemos
juntos, jogaremos tranca e teremos uma noite maravilhosa".
De fato, a noite foi maravilhosa.
O casal amigo era belga também,
chegara havia pouco ao Brasil, a
mulher falava um português miserável e o marido não falava nada, somente ria de tudo, com uma
cara simpática e boçal.
Bebemos, jogamos tranca e, no
final da noite, quando já íamos
dormir, o marido de Mara ofereceu-a ao amigo: "Durma com ela,
eu dormirei com a sua".
Para meu espanto, Mara deu a
mão ao cara, beijou-me no rosto,
despedindo-se, depois beijou o
marido. Deu um tchau breve para
a mulher do homem com quem ia
dormir.
Logo fiquei sozinho, pois o marido de Mara também levou sua
companheira para o quarto.
Achei tudo aquilo estranho, tudo
parecia combinado, até mesmo
me deixarem sozinho numa casa
que eu mal conhecia. Compreendi que devia haver um sentido
naquilo tudo e que o sentido dependia de mim. Dois casais se
amando e eu sozinho, testemunhando. Para piorar, a mulher
que fora minha e que eu, de certa
forma, ainda amava fora para a
cama com um homem que ela
acabara de conhecer.
Já ia para o meu quarto quando
senti um cheiro conhecido. "Un
air embaumé". O perfume preferido de Mara. Ela o usava sempre
que desejava um prazer mais intenso ou mais depravado.
Lembrei que ela me pedira para
ir desarmado. O que significava
aquilo tudo? Estaria tudo combinado, até a minha presença, desnecessária ou necessária? Ia pensar em fazer qualquer coisa, não
sabia o quê, quando o telefone tocou. Tocou a distância e continuou tocando, cada vez mais perto, até que me acordou.
Era Mara. Alegremente, ela me
convidou para passar o fim de semana com eles. Espantei o sonho
que começava a me angustiar e
peguei o carro, sabia vagamente
onde moravam. Custou-me reconhecer o caminho, só sabia que
ali estivera há muito, muito tempo, e que, ao virar a próxima curva, veria a casa pintada de branco, as janelas verdes e cerradas.
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