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DRAUZIO VARELLA
A Aids e os favelados da ONU
No tratamento da Aids, servimos de exemplo para o
mundo. Nosso programa de distribuição gratuita de medicamentos como estratégia para controlar a doença alcançou tamanha repercussão que as organizações internacionais de saúde se
perguntam: se os brasileiros conseguiram, por que outros países
não?
Com a epidemia mundial atingindo 45 milhões de pessoas e virtualmente devastando regiões inteiras do sul e da parte central da
África, além de se disseminar vertiginosamente pelo continente
asiático, a região mais densamente povoada da Terra, a pergunta parece pretensiosa, mas
não é. Haja vista a proposta de
doação de US$ 25 bilhões destinados à distribuição de antivirais
para os habitantes dos países em
desenvolvimento, que o presidente George Bush, quem diria, enviou para o legislativo americano
aprovar.
Há 15 dias, assisti a um encontro internacional sobre o tema,
que reuniu especialistas com
grande experiência na área. Todos concordaram que a experiência brasileira jogou por terra os
principais argumentos empregados para justificar a inviabilidade
da distribuição em massa de drogas contra a Aids. Esses argumentos eram principalmente os seguintes:
1) Baseado na associação de antivirais, o tratamento custava em
média US$ 10 mil por ano no final
dos anos 1990. Como torná-lo
acessível às populações de países
que investem na área da saúde
US$ 1 ou menos per capita anualmente?
2) Os antivirais devem ser tomados com regularidade sob risco de o HIV desenvolver resistência em poucos dias, quando as doses são inadequadas. Como convencer pessoas de baixa escolaridade a aderir a esquemas complexos, que chegam a envolver
mais de dez comprimidos por dia,
divididos em várias tomadas, algumas em jejum, outras depois de
refeições?
3) Como criar uma estrutura
burocrática nacional para assegurar a regularidade da distribuição em países com serviços de
saúde precários?
Graças a avanços tecnológicos
na área de produção dos antivirais, às negociações com a indústria farmacêutica, à quebra de
patentes e à produção de genéricos, o Brasil demonstrou ser viável diminuir o custo médio do tratamento dos US$ 10 mil anuais de
antes para US$ 300 atualmente.
O desenvolvimento de esquemas mais simples de administração, a motivação e o instinto de
sobrevivência das pessoas infectadas pelo HIV, que todos os meses
procuram os postos de saúde espalhados pelo país para receber
seus remédios, criaram mecanismos de pressão que obrigaram o
ministério e as secretarias de saúde a se organizar para garantir a
distribuição e deixaram claro que
a falta de escolaridade não pode
ser invocada como empecilho. A
luta pela sobrevivência tem o
dom de igualar as ações do iletrado às do grande sábio.
Embora na área da prevenção à
Aids não sejamos exemplo para
ninguém, a universalização do
tratamento parece ter impacto inclusive na redução da velocidade
de propagação da epidemia, porque os antivirais têm a propriedade de reduzir drasticamente a
concentração do vírus presente
no sangue e nas secreções sexuais.
Há evidências experimentais
muito sugestivas de que essa redução não elimina, mas dificulta
a transmissão sexual e materno-fetal.
Saí da conferência orgulhoso de
meu país por ter desenvolvido pela primeira vez na história um
programa de combate a uma epidemia que servirá de modelo para aliviar o sofrimento de milhões
de mulheres, homens e crianças. E
imaginar que isso foi conseguido
à custa da vontade política e da
perseverança de uma pequena
equipe de funcionários públicos
mal pagos, liderada pelo ex-ministro José Serra (justiça seja feita), sem nenhuma ajuda internacional, que foi capaz de encontrar
as soluções mais adequadas à
nossa realidade.
Sem querer, fiz um paralelo entre a ameaça à vida que a Aids representa e os dados que a ONU
acaba de publicar sobre a explosão do número de favelados nos
diversos países, estimado em 1 bilhão nos dias atuais e que deverá
dobrar em 30 anos. E que, segundo o organismo internacional,
tornará a vida nas cidades muito
mais violenta e cheia de riscos.
Por que razão não podemos
inovar também nessa área, quebrar tabus medievais, vencer resistências retrógradas e demonstrar ao mundo que é possível levar o planejamento familiar aos
mais pobres? Garantir a eles os
mesmos direitos de acesso a métodos anticoncepcionais de que as
pessoas das classes mais favorecidas dispõem, ao mesmo tempo
em que procuramos criar uma ordem social mais justa?
Se, para enfrentar a epidemia
de Aids, foi possível distribuir à
população medicamentos que,
em princípio, poderiam custar
US$ 10 mil por ano, o que nos impede de enfrentar a epidemia de
gestações indesejadas entre adolescentes, que assola sem piedade
as famílias humildes, com intervenções educativas e métodos de
contracepção que custam uma
fração ínfima desse valor?
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