|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
Atualizações
Metade do que um médico aprende na residência é ultrapassada dez anos mais tarde
OS PROGRESSOS da medicina
são cada vez mais rápidos.
Calcula-se que, hoje, o que
um médico sabe no fim de sua residência estará, em boa parte (aproximadamente a metade), ultrapassado dez anos mais tarde.
Felizmente, depois de mais dez
anos, o saber originário de um médico não será reduzido a um quarto.
Há partes desse saber que resistem
ao tempo. Além do mais, a experiência aprimora o clínico. Um gastroenterologista que não se atualizasse
durante uma década ignoraria eventuais possibilidades de cura e procedimentos diagnósticos novos, mas,
em compensação, sua arte de apalpar e auscultar seria melhor do que
em começo de carreira.
Para estancar a corrosão do saber
pelo tempo, nos EUA, por exemplo,
os médicos são obrigados a comprovar que, a cada ano, passam 25 horas
em cursos, congressos etc. (um princípio análogo se aplica, aliás, a psicólogos e psicoterapeutas). Essa norma é, por sua vez, desatualizada:
qualquer médico dedica muito mais
de 25 horas por ano à tentativa de
manter seu saber em dia.
Não é uma tarefa fácil. Volumes de
atualização das diferentes especialidades são publicados regularmente,
mas, na hora da publicação (geralmente um ano depois da redação
dos textos), uma parte do conteúdo
já está ultrapassada. O mesmo vale
para os periódicos.
O instrumento mais adaptado à
velocidade da evolução do saber é a
internet. Recentemente, a universidade Stanford lançou "Skolar", um
serviço online de consulta atualizada para médicos. As inscrições foram tantas que o serviço teve que ser
fortalecido pela integração com outro (o endereço é agora www.ovid.com/clinicalresource).
A questão da atualização do saber é um bom critério para separar
as ciências "exatas" das "humanas". Nas exatas, em princípio, o
saber perde sua validade automaticamente (e sem objeções) quando
surgem experiências e dados novos
e confirmados. Na elaboração do
saber das humanas, os dados são
tão importantes quanto a interpretação que lhes dá uma significação.
E, na interpretação, o peso do viés,
das esperanças e das apostas subjetivas é grande demais para que as
"atualizações" sejam acatadas imediatamente.
Um exemplo. No fim dos anos
60, na ilha de Korcula (então Iugoslávia) houve uma reunião de estudo para quadros do Partido Comunista Italiano. Pesquisas sociológicas recentes acabavam de constatar que os operários italianos se
consideravam exponentes da classe média, e não do proletariado;
além disso, suas ambições diziam
respeito ao padrão de vida, não à
vontade de se apoderar dos meios
de produção, inventando o socialismo. A assembléia se dividiu.
Houve os que queriam que o partido e o sindicado representassem
a vontade dos trabalhadores assim
como ela se expressava e, portanto,
passassem a promover reivindicações essencialmente quantitativas,
de salário, bônus etc. No outro extremo, houve os que declararam
que as pesquisas eram reacionárias
(note-se: não erradas, mas reacionárias) e só mostravam que a classe operária dos anos 60 era "alienada": ela precisava, portanto, de
uma vanguarda que lhe lembrasse
sua "vocação" revolucionária.
Os exponentes do primeiro grupo foram as levas iniciais do que,
mais tarde, foi chamado de "terceira via" social-democrata. Alguns
exponentes do segundo, poucos
anos depois, confluíram numa luta
armada que estropiou e assassinou
militantes sindicais "alienados".
Mais duas observações:
1) Nessa divisão entre ciências
exatas e humanas, estabelecida pelo caráter irrefutável ou não das
atualizações, a psicologia é um híbrido, "mezzo" alici, "mezzo" mozzarella. Deve ser por isso que ela
não pára de me fascinar.
2) É óbvio que as artes, embora
constituam propriamente um saber, não sofrem de nenhuma maneira o mesmo desgaste do saber
científico: o último romance publicado não compromete nem "Moby
Dick", nem o "Orlando Furioso".
Mas isso não significa que não haja
uma espécie de exigência de atualização nas artes. Como assim?
Na homenagem a Paulo Autran
que aconteceu no sábado passado,
durante as Satyrianas, na praça
Roosevelt, em São Paulo, alguém
lembrou que Paulo Autran, até o
fim, não parava de se interessar pelo trabalho de jovens atores, dramaturgos, diretores etc. e de assistir às peças que eles montavam.
O grande artista é sempre sedento de conhecer e apreciar o trabalho dos que vêm depois dele.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Exposição: Paris sedia feira de arte contemporânea Índice
|