São Paulo, Quinta-feira, 18 de Novembro de 1999
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CONTARDO CALLIGARIS

Lixo da ciência se torna nosso breviário moral

Pensamos facilmente que somos menos ingênuos do que nossos antepassados. E que somos mais espertos do que outros (ignorantes ou primitivos) que crêem no que lhes é transmitido sem desconfiar.
Afinal, "eles" acreditam em qualquer coisa: que a chuva é o choro dos anjos ou que o trovão é a ira de Deus. Nós somos modernos e não nos deixamos enganar, não é?
De fato, só passamos de ingênuos para crédulos, o que é pior. A própria ciência, que supostamente deveria corrigir nossa ingenuidade com uma dose de ceticismo, não pára de nos sugerir novas crenças.
Somos inundados por "verdades" carimbadas como científicas, que ficam portanto incontestadas e tomam conta de nossas vidas.
Cada semana traz novas pesquisas. Acreditamos nelas e adotamos as suas propostas.
É fácil entender por que há tantas pesquisas fajutas. Pesquisadores precisam levantar fundos e às vezes os donos dos fundos precisam de uma pesquisa para vender amendoins. Por exemplo, houve época em que a pseudo-ciência convenceu mães do mundo todo de que o leite em pó era melhor do que o leite do peito: bom para o comércio. Resta entender de onde vem a credulidade.
Tomemos um exemplo recente. Em outubro, os "Arquives of Pediatrics and Adolescent Medicine" publicaram um estudo da comissão americana de defesa do consumidor. O artigo diz respeito ao costume dos pais de dormir com filhos até 2 anos de idade. A conclusão é que se trata de uma prática perigosíssima e frequentemente letal.
O estudo é um modelo de ciência ruim. É constatado que, entre 1990 e 1997, nos EUA, 515 crianças de menos de 2 anos morreram na cama de adultos.
Destas, 394 foram estranguladas e sufocadas por lençóis e cobertores ou por algum ornamento da cama. As outras 121 foram esmagadas pelos adultos que dormiam com elas. Esses números, aparentemente apavorantes, levam a presidente da comissão a declarar peremptoriamente: "O único lugar seguro para crianças dormirem é um berço que tenha os padrões de segurança e tenha um colchão bastante firme e bem-ajustado".
Como muitos psicanalistas, eu prefiro que os nenês não durmam na cama com os pais. Poderia portanto ficar satisfeito com o dito estudo, mas a debilidade científica da pesquisa é intolerável. Os números apresentados são valores absolutos, sem significação por não serem comparados nem sequer com os números globais de nascimentos, mortes e assassinatos de nenês.
Por exemplo, nos EUA, a cada ano morrem 2.700 nenês de morte repentina não explicada (SIDS - Sudden Infant Death Syndrome), a grande maioria deles morre dormindo sem um adulto por perto -provavelmente dormindo com os pais estariam bem mais seguros.
Ou então os pesquisadores se esqueceram de todo parâmetro secundário: será que é perigoso dormir com pais ou dormir com pais bêbados e drogados?
Apesar dessas falhas evidentes, a "pesquisa" encontrou a credulidade entusiasta da comissão de defesa do consumidor e, se não esbarrasse com jornalistas estraga-prazeres, teria encontrado a credulidade global -chegando sem dúvida até o Brasil.
Por que estaríamos dispostos a engolir essa história?
A questão de dormir ou não com as crianças, em nossa cultura, é um lugar de contradição: uma escolha difícil. Por um lado, idealizamos a independência do nenê, futuro indivíduo, e portanto consideramos importante expô-lo cedo à solidão ventosa do vasto mundo. Por outro, valorizamos nossos rebentos ao ponto de querer guardá-los para sempre sob nossas asas protetoras.
A decisão entre berço e cama dos pais acarreta quase sempre alguma culpa, justamente por ser em última instância uma escolha subjetiva: desde o casal que quer mesmo colocar o nenê no meio para marido e mulher permanecerem afastados um do outro até o casal que isola as portas para não escutar nem o choro de fome.
Qualquer escolha diz no mínimo o que queremos para e com nossos filhos.
Ora, a pesquisa em questão nos libera da tarefa de nos interrogarmos e de optarmos: enfim, numa matéria tão delicada, sabemos o que fazer. Seguiremos a "ciência". Que descanso! Não precisamos decidir sobre nada!
Nossa cultura passou de um mundo regrado pelas certezas morais tradicionais ao exercício inquietante da liberdade. Ora, graças à ciência conseguimos recuperar certezas parecidas com as antigas e isso aparentemente sem nos submetermos a nada e a ninguém. Pois a ciência é coisa nossa, fruto de nossa razão. Tanto faz que às vezes ela acabe defendendo os interesses de alguma Nestlé: o que importa é que ela resolva e decida cabeludas questões subjetivas segundo critérios objetivos.
Os valores por ela invocados são reais, fisiológicos: sobreviver, ficar saudável -valores, em suma, acima de nossas preocupações, idéias e emoções particulares.
Por isso mantemos um convite aberto para qualquer semblante de ciência invadir nosso cotidiano e impor a nossas vidas uma divícia de regras que podemos adotar sem dilemas éticos. Nossa modernidade, em suma, cansada de liberdade, está disposta a aceitar o lixo da ciência como breviário moral.


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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