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CONTARDO CALLIGARIS
Lixo da ciência se torna nosso breviário moral
Pensamos facilmente que somos
menos ingênuos do que nossos
antepassados. E que somos mais
espertos do que outros (ignorantes
ou primitivos) que crêem no que
lhes é transmitido sem desconfiar.
Afinal, "eles" acreditam em
qualquer coisa: que a chuva é o
choro dos anjos ou que o trovão é
a ira de Deus. Nós somos modernos e não nos deixamos enganar,
não é?
De fato, só passamos de ingênuos para crédulos, o que é pior. A
própria ciência, que supostamente deveria corrigir nossa ingenuidade com uma dose de ceticismo,
não pára de nos sugerir novas
crenças.
Somos inundados por "verdades" carimbadas como científicas,
que ficam portanto incontestadas
e tomam conta de nossas vidas.
Cada semana traz novas pesquisas. Acreditamos nelas e adotamos as suas propostas.
É fácil entender por que há tantas pesquisas fajutas. Pesquisadores precisam levantar fundos e às
vezes os donos dos fundos precisam de uma pesquisa para vender
amendoins. Por exemplo, houve
época em que a pseudo-ciência
convenceu mães do mundo todo
de que o leite em pó era melhor do
que o leite do peito: bom para o
comércio. Resta entender de onde
vem a credulidade.
Tomemos um exemplo recente.
Em outubro, os "Arquives of Pediatrics and Adolescent Medicine" publicaram um estudo da comissão americana de defesa do
consumidor. O artigo diz respeito
ao costume dos pais de dormir
com filhos até 2 anos de idade. A
conclusão é que se trata de uma
prática perigosíssima e frequentemente letal.
O estudo é um modelo de ciência ruim. É constatado que, entre
1990 e 1997, nos EUA, 515 crianças de menos de 2 anos morreram
na cama de adultos.
Destas, 394 foram estranguladas e sufocadas por lençóis e cobertores ou por algum ornamento
da cama. As outras 121 foram esmagadas pelos adultos que dormiam com elas. Esses números,
aparentemente apavorantes, levam a presidente da comissão a
declarar peremptoriamente: "O
único lugar seguro para crianças
dormirem é um berço que tenha
os padrões de segurança e tenha
um colchão bastante firme e bem-ajustado".
Como muitos psicanalistas, eu
prefiro que os nenês não durmam
na cama com os pais. Poderia
portanto ficar satisfeito com o dito estudo, mas a debilidade científica da pesquisa é intolerável. Os
números apresentados são valores absolutos, sem significação
por não serem comparados nem
sequer com os números globais de
nascimentos, mortes e assassinatos de nenês.
Por exemplo, nos EUA, a cada
ano morrem 2.700 nenês de morte
repentina não explicada (SIDS -
Sudden Infant Death Syndrome),
a grande maioria deles morre
dormindo sem um adulto por
perto -provavelmente dormindo com os pais estariam bem
mais seguros.
Ou então os pesquisadores se esqueceram de todo parâmetro secundário: será que é perigoso dormir com pais ou dormir com pais
bêbados e drogados?
Apesar dessas falhas evidentes,
a "pesquisa" encontrou a credulidade entusiasta da comissão de
defesa do consumidor e, se não esbarrasse com jornalistas estraga-prazeres, teria encontrado a credulidade global -chegando sem
dúvida até o Brasil.
Por que estaríamos dispostos a
engolir essa história?
A questão de dormir ou não
com as crianças, em nossa cultura, é um lugar de contradição:
uma escolha difícil. Por um lado,
idealizamos a independência do
nenê, futuro indivíduo, e portanto consideramos importante expô-lo cedo à solidão ventosa do
vasto mundo. Por outro, valorizamos nossos rebentos ao ponto de
querer guardá-los para sempre
sob nossas asas protetoras.
A decisão entre berço e cama
dos pais acarreta quase sempre
alguma culpa, justamente por ser
em última instância uma escolha
subjetiva: desde o casal que quer
mesmo colocar o nenê no meio
para marido e mulher permanecerem afastados um do outro até
o casal que isola as portas para
não escutar nem o choro de fome.
Qualquer escolha diz no mínimo o que queremos para e com
nossos filhos.
Ora, a pesquisa em questão nos
libera da tarefa de nos interrogarmos e de optarmos: enfim, numa
matéria tão delicada, sabemos o
que fazer. Seguiremos a "ciência".
Que descanso! Não precisamos
decidir sobre nada!
Nossa cultura passou de um
mundo regrado pelas certezas
morais tradicionais ao exercício
inquietante da liberdade. Ora,
graças à ciência conseguimos recuperar certezas parecidas com as
antigas e isso aparentemente sem
nos submetermos a nada e a ninguém. Pois a ciência é coisa nossa,
fruto de nossa razão. Tanto faz
que às vezes ela acabe defendendo os interesses de alguma Nestlé:
o que importa é que ela resolva e
decida cabeludas questões subjetivas segundo critérios objetivos.
Os valores por ela invocados são
reais, fisiológicos: sobreviver, ficar
saudável -valores, em suma,
acima de nossas preocupações,
idéias e emoções particulares.
Por isso mantemos um convite
aberto para qualquer semblante
de ciência invadir nosso cotidiano e impor a nossas vidas uma divícia de regras que podemos adotar sem dilemas éticos. Nossa modernidade, em suma, cansada de
liberdade, está disposta a aceitar
o lixo da ciência como breviário
moral.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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