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CONTARDO CALLIGARIS
"Transex"
Assisti (com atraso) a
"Transex", de Rodolfo García Vázquez, no Espaço dos Satyros da praça Roosevelt. Na peça,
além dos atores, atuam Phedra D.
Córdoba e Savana Meirelles, no
papel de si mesmas. Phedra é
uma das transexuais mais ilustres
de São Paulo. Savana (Bibi), também transexual, apareceu na mídia em 2003, ao defender a idéia
de que ela é a namorada de um
extraterrestre que a visita regularmente.
Um ano atrás, num café da praça Roosevelt, Phedra e Bibi (que,
na época, moravam juntas) discutiam sobre o namorado de Bibi.
Phedra, pé no chão, declarava
que não podia ser um extraterrestre, mas se tratava, obviamente,
de um exu. Rodolfo e Ivam ouviram essa conversa, que inspirou a
peça.
Não sei dizer se o namorado de
Bibi é um exu ou um extraterrestre. Mas sei que, em nossa cultura,
quem não consegue se posicionar
na alternativa entre dois gêneros
(masculino ou feminino) se torna, aos olhos dos demais, um ser
de outro mundo. Não me estranha, portanto, que, para ser amada, Bibi anseie encontrar alguém
que a compreenda, um ser de outro mundo, extraterrestre ou exu
que seja.
De qualquer forma, "Transex" é
uma peça para quem não acha
que as e os transexuais sejam seres de outro mundo ou para os
que querem parar de pensar assim.
O sucesso nessa empreitada é
possível porque as protagonistas
de "Transex" (como todas as
transexuais, aliás) não sofrem de
estranhos desvios sexuais. Elas sofrem de uma dificuldade em estabelecer e afirmar uma identidade
(feminina, por exemplo), que elas
sentem ser a sua, mas que não
corresponde ao corpo que lhes
coube ao nascer. Se se prostituem,
é por duas razões: porque a sociedade não lhes oferece muitas outras chances de ganhar a vida e
porque a prostituição talvez seja
um jeito de confirmar o gênero
que elas vivem como seu. Se tantos homens me desejam, deve ser
verdade que sou mulher.
Estatísticas de países europeus
em que a cirurgia de mudança de
sexo é legal dizem que um homem em cada 30 mil e uma mulher em cada 100 mil procuram
essa intervenção cirúrgica. Poucos, não é? Mas resta saber quantos, sem chegar a tanto, convivem
com alguma contradição entre
seu corpo e sua identidade de gênero.
A sensação de pertencer a um
gênero que contradiz a anatomia
do sujeito é menos rara do que a
gente imagina. Consideremos
uma distinção (freqüentemente
adotada) entre travestismo e
transexualismo.
Travesti seria quem não vive
propriamente um divórcio entre
seu gênero e seu corpo, mas veste
os apetrechos do outro gênero
apenas como fetiches para alimentar desejo e fantasia sexuais.
Transexual seria quem conhece
uma contradição aguda entre seu
sexo anatômico e sua identidade
de gênero, a ponto de agir para
mudar seu corpo e ajustá-lo (à
força de hormônios e cirurgias)
ao gênero que ele sente ser o seu.
Essa distinção simplifica uma
realidade que, de fato, é menos
descontínua. Num livro recente,
Helen Boyd descreve sua relação
com o marido, que gosta de usar
roupa feminina, "My Husband
Betty: Love, Sex and Life with a
Cross-Dresser" (Meu Marido
Betty: O Amor, o Sexo e a Vida
com um Travesti). No começo, ela
parece contar um jogo sexual que
não compromete nem um pouco
a identidade de gênero do marido. Afinal, por que um homem
não brincaria de cinta-liga sem
deixar de ser e de se sentir homem? Ora, um desfile variado de
casos e entrevistas mostra logo a
Helen e a seu leitor que o ato de se
travestir, mesmo quando serve
uma "brincadeira" sexual, mal
esconde uma dúvida ou uma crise
de identidade.
Travestismo e transexualismo
falam da mesma inquietude
quanto a uma identidade de gênero que discute com a anatomia
do sujeito.
Em "Transex", não há apenas
homens que se tornam mulheres.
Há também uma mulher que se
tornou homem e proclama que,
para consolidar-se em seu gênero
(masculino, no caso), ele precisou
de uma "castração", que lhe colocasse um pênis no lugar da vagina. Como, em geral, pensamos
que a castração é uma operação
que corta e retira, a expressão resulta engraçada. No entanto, ela é
surpreendentemente adequada.
Eis como.
A psicanálise chama de castração (esqueça por um instante
qualquer associação açougueira)
o ato pelo qual um gênero é atribuído ao sujeito, geralmente pelo
pai: você é mulher ou você é homem. Quando o ato não funciona
direito, o sujeito pode querer que
essa "castração" seja perpetrada
de novo e de vez, para que a designação seja enfim clara e, se possível, concorde com o que diz a
anatomia de seu corpo.
Quem conversou com transexuais operados/as sabe que, com
freqüência, eles/elas consideram o
cirurgião como seu "novo pai".
"Transex" fica em cartaz até 19
de dezembro. Não perca.
Nota
Recentemente, ao aconselhar
um casal cujo filho decidiu pedir
operação de mudança de sexo,
um livro atrapalhou minhas teorias pré-formadas e, portanto, me
ajudou: "True Selves: Understanding Transsexualism for Families, Friends, Co-workers and Helping Professionals" (Verdadeiros
"Self": Entendendo o Transexualismo, para o Uso de Famílias,
Amigos, Colegas e Profissionais
da Ajuda), de Brown e Rounsley.
@ - ccalligari@uol.com.br
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