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FERREIRA GULLAR
O imperador republicano
Dom Pedro 2º foi um governante íntegro, austero e solidário com os humildes e escravos
ONTEM, 17 de novembro, fez
118 anos que dom Pedro 2º,
deposto do trono dois dias
antes, foi forçado a embarcar em um
vapor ancorado no porto do Rio de
Janeiro. O temor do tenente-coronel Mallet, encarregado de levá-lo
numa lancha, era que, ao transferi-lo para o vapor, na escuridão da noite, ele caísse no mar e se afogasse, já
que dom Pedro, com um 1,90 m de
altura, era muito grande e pesado.
Li isso no excelente perfil do imperador escrito por José Murilo de
Carvalho, um livro bom de ler, que
alia erudição e lucidez a uma narração objetiva e bem-humorada. Esse
livro mostra-nos quem foi de fato
aquele homem que, contra sua vontade, ocupou o trono do império
brasileiro durante 49 anos.
Se, criancinha, reagiu chorando à
aclamação do povo no Campo de
Santana, aos 65 anos receberia com
serenidade a notícia de sua deposição. "Estão todos malucos", exclamou, referindo-se aos golpistas -e
voltou os olhos para o livro que lia.
Aliás, ele lia como ninguém, e seu
interesse pelas ciências, pela literatura e pelas religiões durou toda a vida. Falava latim, francês, inglês, alemão, italiano e espanhol; lia grego,
árabe, hebraico, sânscrito, provençal e tupi-guarani. Os caricaturistas,
no entanto, o ridicularizaram por ler
muito e ter por hobby a astronomia.
A intenção era mostrar que ele vivia
no mundo da lua e talvez vivesse,
mas nem sempre, porque, quando
Solano López invadiu Mato Grosso,
ele montou num cavalo, dirigiu-se
ao Paço Imperial e ali conclamou o
povo a defender a honra do Brasil.
Finda a guerra, quiseram erguer
duas estátuas em sua homenagem.
Ele repeliu a idéia, tal era seu horror
a pompas e rapapés.
Isso se deve em parte à maneira
como foi educado, com o propósito,
diz José Murilo, de fabricar-se um
príncipe perfeito. Impressiona a clareza do projeto de formá-lo e, sobretudo, a consciência dos valores que
devem constituir o caráter e a visão
de um governante, mas é verdade
também que ele tinha pendor para
os estudos, deixando muitas vezes
de brincar para estudar.
Decretada a maioridade do jovem
monarca, era preciso casá-lo, mas as
famílias reais européias, lembrando-se de Pedro 1º, temiam dar-lhe
uma filha em casamento, com conseqüências imprevisíveis. Em desespero de causa, negociou-se o casamento de Pedro 2º com uma irmã de
Fernando 2º das Duas Cecílias. Ao
ver o retrato da possível noiva, Teresa Cristina, ele a achou linda e aceitou casar-se. Foi, porém, grande sua
decepção quando a viu pessoalmente: era feia, gorda, baixota e manca.
Ele chorou no ombro de sua aia,
murmurando: "Enganaram-me,
Dadama!".
Isso não ia ficar assim. Muito embora não fosse como seu pai, um
atleta sexual, não se manteve fiel à
esposa. Pelo contrário, corneou-a
com muitas jovens e belas mulheres,
solteiras ou casadas, como Mariquinha Guedes, um exemplo de beleza,
ou a viúva Maria Leopoldina. Mas o
amor de sua vida foi a condessa de
Barral, por quem alimentou uma
grande paixão, física e intelectual,
que durou 26 anos. Entrementes,
porém, teve outras amantes, como
se vê pelas cartas que deixou: "Não
consigo mais segurar a pena, ardo de
desejo de te cobrir de carícias", escreveu à condessa Villeneuve.
Mas não é isso que mais importa
na personalidade de Pedro 2º. Ele foi
um estadista íntegro, austero, solidário com os mais humildes e, particularmente, com os escravos. Duramente criticado pelos jornais, defendeu a liberdade de imprensa. Ao
longo de seu reinado, nunca aceitou
aumento da dotação do Estado à família imperial. Não acumulou dinheiro, as viagens que fazia ao exterior eram custeadas com empréstimos pessoais e ainda doava parte da
dotação ao Tesouro. Quantos políticos brasileiros você conhece com tal
desprendimento?
Dom Pedro 2º, por estranho que
pareça, era republicano e abolicionista como sua filha, Isabel, que chegou a acoitar escravos fugidos no palácio imperial de Petrópolis. Assim,
incompatibilizou-se com os fazendeiros, que condicionavam o apoio à
monarquia ao apoio dele à escravidão. Assinada a Lei Áurea, Cotegipe
disse à princesa Isabel: "Com a abolição, você redimiu uma raça, mas
perdeu um trono".
No dia de hoje, há 118 anos, a uma
da madrugada, o navio Alagoas partiu rumo à Europa, levando dom Pedro e a família real para o exílio. Ao
passar por Fernando de Noronha,
soltaram um pombo, que levava como mensagem de despedida a palavra saudade. Mas o pombo, de asas
podadas, caiu no mar e afogou-se,
diante de seus olhos. Dois anos depois, em Paris, dom Pedro morria.
De amor pelo Brasil.
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