São Paulo, quarta, 18 de novembro de 1998

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LIVRO - LANÇAMENTO/EUA
Updike lança um quase-romance

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Protesto geral seguiu-se ao anúncio de que Henry Bech foi o vencedor do Prêmio Nobel de literatura do ano de 1999."
Não será o caso hoje, dia em que John Hoyer Updike recebe a medalha de honra da National Book Foundation -em que pesem as diferenças de importância do prêmio e do autor.
Aos 66 anos e com 49 livros publicados, o criador de Bech não é um candidato provável às honras da Academia Sueca, mas é tido, por consenso, como um dos maiores estilistas da língua, dono de uma arte verbal que se ilumina variadamente nas paisagens do romance, do conto, da poesia, do ensaio, da crônica e da crítica.
Ninguém escreve tanto tão bem como ele: três contos, três poemas, sete resenhas e um ensaio a contar de março.
Soma-se a isso este novo livro, "Bech at Bay" (Bech Acuado), um "quase-romance" de cinco contos interligados.
² Labirintos
Henry Bech é um velho conhecido, o "semi-obscuro autor judeu-americano", personagem principal de dois livros anteriores: "Bech: A Book" (1970) e "Bech Is Back" (1982).
Mas Bech aqui é também mais simplesmente um velho, desconhecido de si, procurando chão no mundo literário, em pleno labirinto das relações entre autores, personagens, críticos, agentes, editores e jornalistas, sem falar nos outros labirintos, onde coabitam homens e mulheres.
Que o alter ego de Updike seja um romancista judeu parece uma piada judaica, mas não exatamente digna do humor sombrio de Bech. Atormentado pelas grandezas da prosa e as pequenezas do coração, esse Flaubert do Brooklyn está quase no extremo oposto da exuberância verbal, se não moral, de seu autor.
Para que poetas em tempos de pobreza?, perguntava Hölderlin, há 200 anos. Para que poetas em tempos de riqueza? seria uma pergunta mais legítima para o anatomista da Pensilvânia, dissecando amorosamente as entranhas de Bech.
O livro é esfuziante de bom humor e maus sentimentos: bom humor de Updike, más vibrações de virtualmente todo mundo, especialmente os autores, reais e imaginados, em sua luta sangrenta por fama, fortuna e imortalidade.
"Bech Presides", o conto mais longo, é um tour-de-force de rivalidade literária, ambientado numa academia de letras fictícia, sem nada de fictício.
Para quem é membro da Academy of Arts and Letters desde 1976, as ironias e sarcasmos se voltam, presumivelmente, contra ele mesmo -o "Updike" desprezado por Bech, um desses autores "vivendo uma vida protegida nos subúrbios, enquanto o centro da cidade da arte vai se desintegrando".
Ficções de ficções se multiplicam neste, como nos outros contos, mas o livro está muito distante da metaliteratura como destino.
Piadas à maneira de Borges (livros imaginários, como a "Nixoníada", sem falar na obra completa de Bech), ou Calvino (criador e criatura se esgrimando ao longo do texto) são incidentais, numa prosa que deve muito mais às felicidades vocabulares de Nabokov e às misérias humanas de contemporâneos estimados de Bech, como Saul Bellow e Philip Roth.
O bem-estar da escrita de Updike é um dos prazeres da nossa vida de leitor. Cada sentença é um espetáculo, nem sempre acessível ao milagre da tradução.
E cada página guarda sua palavra rara, cintilando escondida no fundo de um parágrafo: "zombified", "necktieless", "ligatured", "McDonaldized", "Rothkoesque".
Das agruras de poetas em tempos de repressão na ex-Tchecoeslováquia às angústias alegres do septuagenário Bech, pai apaixonado de uma menina de oito meses, passando pelo assassinato de seus críticos e pelas disputas judiciais na Hollywood dos anos 70, "Bech at Bay" resume um quarto de século numa sequência irregular de vinhetas.
Acuado pela literatura e pelos literatos, encurralado no funil dos anos, acossado pelo desafio da vida sexual ("centro luminoso de seu patriotismo americano" e "sugestão da vida eterna"), posto em xeque pela busca do amor, Bech faz o que pode para chegar à altura do autor da tetralogia do Coelho ou, mais recentemente, dos romances ambiciosos "Na Beleza dos Lírios" (1996) e "Toward the End of Time" (1997).
A verdade nas palavras e os limites da experiência, a bravura americana e a nuance da Europa, a finitude de tudo e a transitoriedade, a comédia da vida e a tragédia da vida, a imitação perfeita de estilos e vozes e a concentração idiossincrática: navegando com brio entre tantos portos, tantas vezes visitados, Updike não chega a ser o Henry James de sua geração, mas é muito maior do que Henry Bech.
Na vida "aérea e glamourosa da literatura", ele é um embaixador da lucidez e das pequenas intensidades.
As comédias de Bech começam num cemitério em Praga e terminam com um bebê no colo, em pleno pódio da Academia Sueca.
Esse sucesso não é mais comédia e faz de "Bech at Bay" a narrativa, não de uma caçada, mas sim de uma tortuosa, atrapalhada, finalmente abençoada liberação.
²
Livro: Bech at Bay Autor: John Updike
Lançamento: Knopf Onde encomendar: livraria Cultura (tel. 011/285-4033 ou www.livcultura.com.br), Amazon (www.amazon.com)



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