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Bach é sinônimo de "música", substantivo sem dono
da Equipe de Articulistas
Chega a ser difícil pensar nele
como compositor. A música de
Bach (1685-1750) tem uma autoridade tamanha, e há tanto tempo,
que é quase sinônimo de "música", substantivo sem dono. Desde
o início do século 19, estudar
composição é estudar a música de
Bach e aprender piano -ou violino ou violoncelo- é aprender a
tocar Bach.
Até hoje ninguém disputa com
ele a supremacia no domínio da
música religiosa -com palavras
ou sem. Bach é o ponto de apoio
da música na nossa cultura e é
mais natural pensar nele como
música do que como um homem
que escrevia música.
Há uma certa ironia nisso, antevista num artigo antológico de
Theodor Adorno, "Bach Defendido de Seus Admiradores" (em
"Prismas"). O que os compositores fazem dele, absorvendo seus
ensinamentos e os torcendo para
seus próprios fins é uma coisa;
outra, bem diferente, é o que faz a
indústria cultural.
O mais humano dos compositores será neutralizado em monumento: Bach vira ideologia (conforto religioso, tema de festivais e
competições) e mercadoria (música para ninar bebês, jingles de
espera telefônica, trilha de comerciais natalinos). É uma ironia porque Bach, para Adorno, representa justamente "a emancipação do
sujeito", capaz de gozar da liberdade no domínio objetivo de todas as técnicas de composição da
sua época.
Nesse cenário, as celebrações de
250 anos da morte de Bach, no
ano que vem, fariam prever um
carnaval soturno de produtos e
promoções. Mas a tese de Adorno
tornou-se obsoleta, em parte, devido ao resgate de Bach pela "alta"
cultura, fruto do embrutecimento
cada vez maior da "baixa".
Bach foi salvo, paradoxalmente,
pela decadência da cultura de
massa, na qual uma música dessas não tem mais lugar. O que as
gravadoras estão apresentando,
desde já, para comemorar o número redondo, são coleções que
impressionam pela magnitude e
seriedade, grandes monumentos
cujo sofisticado apelo comercial
não diminui sua importância para os ouvintes de boa-fé.
É o caso das doze caixas integrando a série "Bach 2000", da
Teldec. São 153 CDs, com a obra
completa de Bach: aproximadamente seis dias e meio de música.
Nem tudo é novo na empreitada.
Há gravações antigas do Concentus Musicus de Viena e do Leonhardt-Consort, interpretando
cantatas, e curiosidades de arquivo, como as suítes para violoncelo, registradas na década de 60 por
Nikolaus Harnoncourt (pioneiro
da "autenticidade", mas nesse caso decepcionante).
Há também surpresas, como as
peças para alaúde-cravo, tocadas
pelos músicos do Giardino Armonico; ou as fantasias para órgão, ornamentadas fantasticamente mesmo por Ton Koopman. ("Sem os ornamentos, essa
música faz pensar no interior de
uma igreja barroca devastada por
um incêndio", comenta Koopman no encarte.)
Sem pretensão de "obras completas", a série Bach da Harmonia
Mundi talvez seja uma pedida
melhor para quem não tem muito
conhecimento dos intérpretes
-nem fundos ilimitados no banco.
Ao contrário da Teldec, que só
vende caixas inteiras de doze ou
mais CDs, os discos da Harmonia
Mundi podem ser comprados um
a um. Incluem gravações antológicas da música sacra ("Missa em
Si Menor", "Paixão Segundo São
Mateus", "Magnificat"), regidas
por Philippe Herreweghe.
Nas cantatas para contralto, o
solista é o contratenor Andreas
Scholl, que está hoje para a música barroca como Ian Bostridge
para a romântica: é o intérprete
predestinado para nós (quem diria?), ouvintes predestinados.
Os CDs da Harmonia Mundi
aderem impecavelmente aos
princípios da interpretação autêntica; mas essa nova geração de
músicos já chegou àquele ponto
em que conhecimento e intuição
viram uma coisa só. Escutam a
música naturalmente, com o ouvido de dentro, sem o qual o de fora é só um pavilhão auditivo. Estrela entre estrelas, o violinista
Andrew Manze reinventa a "Toccata e Fuga em Ré Menor" (mais
conhecida na versão para órgão)
com um fogo de imaginação que
transcende todos os tratados, sem
esquecer deles.
Para o mês de março, está previsto o lançamento também de
um CD-ROM, "Johann Sebastian
Bach - Uma Enciclopédia Musical", com biografia, catálogo interativo, ensaios de musicologia e
acervo de imagens. A invenção do
CD-ROM não alterou rigorosamente nada nos hábitos da escuta;
mas beneficia muito esse tipo de
instrução, no qual o comentário
vem junto com a música, e vice-versa.
Pode-se mencionar ainda outra
coleção integral, do selo Hänssler
Classic, com 171 CDs, sob a coordenação de Helmuth Rilling. Seria
uma grande notícia, se não tivesse
sido eclipsada, de antemão, pelas
outras duas coleções, que são bem
superiores.
Numa era de empobrecimento,
inclusive intelectual, o advento
dessas coleções ganha uma conotação quase religiosa: sustenta, ao
menos, a religião de Bach e a paixão da música. Seremos nós as
primeiras gerações a terem a possibilidade de escutar a obra completa de Bach, desde que foi escrita. O efeito de uma escuta sistemática dessas é difícil de prever. O
que pode fazer conosco é assunto
para a alma de cada um. O que há
de fazer com a música é um assunto maior, que talvez não tenha
interesse ainda, mas vai ter daqui
a 50 ou 250 anos.
(AN)
Disco: Bach 2000
Gravadora: Teldec/WEA
Quanto: R$ 3.625,70 (12 caixas, 153 CDs)
Avaliação:
Disco: Série Bach
Gravadora: Harmonia Mundi
Quanto: US$ 9,97 (cada CD da série)
Onde encontrar: cdworld.com
Avaliação:
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