São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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Ícones ambíguos servem de espelho

DA REDAÇÃO

Nos romances de Hanif Kureishi, Londres sempre é protagonista. Surge tanto como desafio para os imigrantes como espaço ao mesmo tempo claustrofóbico e libertador para os ingleses. "Quando era jovem, a cidade me atraía, era um lugar excitante, sexual e intelectualmente. Hoje, vejo-a de maneira mais tranquila, mas nossa relação ainda é intensa. É impossível dissociá-la dos meus textos", diz o escritor.
De sua casa, no bairro de Hammersmith, Hanif Kureishi concedeu a seguinte entrevista à Folha, por telefone. (SC)

Folha - Você diria que "O Dom de Gabriel" pode ser considerado uma continuação de "Intimidade"?
Hanif Kureishi -
Sim. Meus livros mais recentes são todos sobre o que as pessoas querem umas das outras, ou porque devem permanecer juntas, vivendo, conversando, transando e comendo juntas. O ponto a que sempre chego, acredito, é que apenas essas coisas é que realmente existem.

Folha - Sua primeira idéia era escrever um livro para crianças. Quando e por que "O Dom de Gabriel" se transformou num romance para adultos?
Kureishi -
Fiquei interessado no isolamento desse garoto. Comecei a ver que havia uma estreita relação com a minha própria sensação de isolamento, com o fato de eu sempre me perder dentro de minhas próprias idéias. Gabriel, ao traduzir o conteúdo de sua mente nos desenhos, faz o mesmo que eu com minhas histórias.
Os desenhos de Gabriel produzem sensações em outras pessoas, e o garoto gosta de observá-las, se excita com a idéia de que pode alterar a ordem das coisas a partir do impacto provocado por sua criatividade. É um sentimento muito próximo ao que eu experimento ao escrever.

Folha - A relação entre pais e filhos também o tem interessado há tempos, não?
Kureishi -
Sim, diria que meus últimos livros preocupam-se com a maneira como os filhos influenciam a vida dos pais, às vezes transformando-as, noutras superando ou radicalizando suas experiências. Enfim, fui carregado pela história e ela se transformou em um romance. Foi positiva a mudança, acredito. É o que passa quando as coisas funcionam.

Folha - O seu Gabriel me fez lembrar de outro Gabriel, o colombiano García Márquez, pela maneira como os momentos mágicos se misturam à narrativa. Você foi influenciado pelo realismo fantástico latino-americano?
Kureishi -
Nos anos 70, alguns autores latino-americanos, como Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa, tiveram grande influência na literatura européia. Todos lemos Márquez na universidade. Esses autores nos trouxeram um mundo que não conhecíamos. Um mundo em que os sonhos, a fantasia, podiam se misturar ao dia-a-dia das pessoas. O realismo mágico nos lembrou do que o surrealismo já havia nos ensinado, que vivemos em vários lugares ao mesmo tempo.

Folha - Em "O Álbum Negro" (1995), a referência pop era Prince, neste, e em outros de seus livros, é David Bowie. Ambos têm uma identidade e uma sexualidade ambíguas. Por que você se sente atraído por esse tipo de personagem?
Kureishi -
Porque me passam a idéia de que se pode ser diferente, de que uma pessoa pode ser mais de uma. São personagens que estão interessados em se transformar, em ser ao mesmo tempo homem e mulher. Se pensarmos em termos familiares, eles podem ser mães e pais ao mesmo tempo.
Podem fazer de sua identidade sexual uma performance. Podem jogar com a identidade. E identidade sempre foi um tema que me interessou muito. Prince e Bowie são teatrais, são performers e me fazem pensar no que sou, no que significa fazer uma performance de si mesmo para o mundo.

Folha - Você se inspirou em sua experiência nos anos 70 para construir os pais de Gabriel?
Kureishi -
São pessoas parecidas com tipos que conheci. É o mundo em que mergulhei na época. A maioria dos escritores escrevem muito próximos de seus inconscientes. Se você analisar seus personagens, percebe que parte de você mesmo eles representam.

Folha - Nos seus últimos trabalhos, você tem abandonado temas como o racismo, o pós-colonialismo, que eram tão presentes no começo. Acha que está se transformando em um escritor familiar?
Kureishi -
Acho que tudo é a mesma coisa. O casamento é tão importante para todas as pessoas que definem o perfil político de uma sociedade. A questão racial ainda me interessa bastante. Quando se fala de racismo, estamos falando de coisas que outras pessoas fazem com você. Ou seja, mesmo quando não estou falando particularmente de raça, estou pensando no que outras pessoas podem fazer conosco.

Folha - Como anglo-indiano, qual sua opinião acerca da cruzada encabeçada por Bush contra o terror? Acha que ela materializa o tão falado "choque de civilizações" cogitado por Samuel Huntington?
Kureishi -
O Ocidente e o Oriente sempre foram importantes um para o outro e agora não menos. O vácuo deixado pelo fim do comunismo fez com que o Ocidente tivesse de procurar um espelho e, ao mesmo tempo, um inimigo, ou algo que representasse o resto do mundo e que fosse diferente dele.
Ambos dependem muito um do outro. O fundamentalismo precisa da sexualidade do Ocidente para ser puritano e assim se justificar, e o Ocidente precisa das necessidades e da degeneração do Oriente para ser capitalista. Não há um choque de civilizações, é como um marido e uma mulher, ambos precisam um do outro.


O DOM DE GABRIEL. Autor: Hanif Kureishi. Editora: Companhia das Letras. Quanto: R$ 31 (252 págs.).


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