São Paulo, quarta-feira, 18 de dezembro de 2002

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MARCELO COELHO

Quando a polidez e a civilização já não têm o que dizer

O sujeito está ali, aos berros, dentro do ônibus, apontando um revólver para a cabeça da vítima; a moça grita e chora; mais uma vez, o sequestrador repete: às 18 horas, "a chapa vai esquentar".
Corte. O especialista em sequestros e táticas policiais faz suas considerações. Diz algo assim: "traçado o perfil sociopsicológico do indivíduo, dadas as condições de pressão a que ele estava submetido, era possível intuir que o episódio dificilmente teria um desfecho positivo".
O filme é "Ônibus 174", documentário de José Padilha sobre o sequestro de um ônibus no Jardim Botânico, em junho de 2000. O sequestro durou horas e foi transmitido ao vivo pela televisão.
Terminou com duas mortes: a de uma refém chamada Geísa, baleada pelo sequestrador, e a do próprio sequestrador, chamado Sandro, asfixiado pelos policiais dentro do camburão que o levava preso. Em julgamento realizado na semana passada, esses policiais foram absolvidos da acusação de homicídio.
Voltando ao filme. Vemos algumas cenas de menores de rua cheirando cola. Uma autoridade em segurança pública explica que estamos diante de uma "situação de invisibilidade social", ou algo assim, e que Sandro buscava, ao realizar o sequestro, "alçar-se à condição de protagonista de uma narrativa que viesse a contestar seu estado de inexistência no conjunto da sociedade...".
Não pude anotar literalmente a frase. Não acho que seja absurda. Mas como falam bem as nossas autoridades em segurança pública!
Do ex-secretário de Estado ao carcereiro, passando pelos membros do grupo de elite encarregado de lidar com situações de sequestro, merecem elogios a fluência sintática, a adequação terminológica, a generalizada capacidade de, digamos, "equacionar de modo verbalmente satisfatório narrativas com alto potencial desestabilizativo para a corporação".
É um ex-carcereiro quem mostra a cela desativada da 26ª delegacia, chamada de "cofre", onde Sandro passou um tempo preso. Conta que os detentos faziam rodízio para dormir, pois não havia espaço para todos se estenderem no chão. O ex-carcereiro não aprova, claro, esse tipo de tratamento. Diz que, de fato, as condições daquele xadrez eram "um pouco subumanas".
O contraste entre uma realidade brutal e uma grande sofisticação fraseológica é das coisas que mais me chamaram a atenção no documentário. Claro que tudo, desde a primeira cena, chama a atenção. A imagem do sequestrador, completamente alucinado, com o revólver em punho, segurando Geísa pelo pescoço, não deixa dúvidas ao espectador: Sandro era um bandido perigosíssimo, fora de controle, um verdadeiro demônio. "Transe fáustico", comenta um ex-secretário da segurança pública.
O filme se dedica, sem dúvida, a "desconstruir" essa imagem demoníaca de Sandro. Quando ele tinha seis anos, viu sua mãe ser assassinada com uma faca de cozinha. Passou a ser criança de rua. Foi um dos sobreviventes da chacina da Candelária. Internado várias vezes em campos de concentração para menores infratores. Assaltos. Drogas. Prisão. Etc. etc.
Além dessa realidade social demoníaca, sem frase nem explicação, e da linguagem civilizadíssima, racional, euclydiana, com que se comenta o caso, intervém no filme um terceiro fator: a circunstância de todo o sequestro ter sido televisionado.
É como se "Ônibus 174" tentasse abrir caminho entre duas linguagens: a lógica dos especialistas, de um lado, e a do espetáculo televisivo, de outro. O mundo da negociação, da razão, do convencimento, que em tese (mas muito em tese) deveria prevalecer no caso do sequestro, só pôde aparecer depois de ocorrida a tragédia. Surge nas análises sociológicas, na teoria criminalística, na fala jurídica... O que não é nenhuma novidade, aliás. Desde "Os Sertões" , pelo menos, a situação tem sido essa no Brasil.
A oratória póstuma contrasta com as imagens "ao vivo", com a linguagem da TV. Aqui, o mundo é de pura dissimulação. E não só o bandido como também algumas das vítimas estão agindo como atores para as câmeras. Pelo menos, é o que conta uma das sequestradas, com espantosa tranquilidade e inteligência. Não há argumentos, há "desempenho"; não há razões nem lógica, há jogo de nervos e presença de espírito.
Os policiais comentam que, "tecnicamente", o certo seria um atirador de elite matar Sandro enquanto ele estava dentro do ônibus. Mas tudo indica que não havia autorização para isso simplesmente porque a cena estava sendo televisionada. Temia-se a reação dos setores civilizados da nossa sociedade diante de um assassinato policial ao vivo.
Nada mais típico dessa mesma sociedade, então, do que Sandro ter sido morto por asfixia pelos policiais logo no primeiro momento em que ficou fora do alcance das câmeras de TV.
É também típico, entretanto, condenar-se a barbárie dos policiais quando se pode ver no documentário a fúria da população em volta do ônibus, clamando para que Sandro fosse mesmo assassinado.
E como reagir diferentemente? Quem visse todo o sequestro pela TV, impressionando-se com a fúria e a cara do bandido, teria de fazer muita força para engolir a idéia de que ele é também uma vítima da sociedade.
Acho até que, pelo foco narrativo, pela emocionalização de certas cenas, "Ônibus 174" chega a inocentá-lo demais. Mas o documentário consegue outra coisa. Supera ao mesmo tempo a linguagem da TV -que joga com o instantâneo, o impactante, o julgamento precipitado e descartável- e a linguagem acadêmica, beletrística, oficial -que joga com o abstrato, com o eufemismo, com a polidez civilizada... de preferência, nos momentos em que a polidez e a civilização já nada mais têm a dizer.


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