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MARCELO COELHO
Quando a polidez e a civilização já não têm o que dizer
O sujeito está ali, aos berros, dentro do ônibus, apontando um revólver para a cabeça da vítima; a moça grita e chora;
mais uma vez, o sequestrador repete: às 18 horas, "a chapa vai esquentar".
Corte. O especialista em sequestros e táticas policiais faz suas
considerações. Diz algo assim:
"traçado o perfil sociopsicológico
do indivíduo, dadas as condições
de pressão a que ele estava submetido, era possível intuir que o
episódio dificilmente teria um
desfecho positivo".
O filme é "Ônibus 174", documentário de José Padilha sobre o
sequestro de um ônibus no Jardim Botânico, em junho de 2000.
O sequestro durou horas e foi
transmitido ao vivo pela televisão.
Terminou com duas mortes: a
de uma refém chamada Geísa,
baleada pelo sequestrador, e a do
próprio sequestrador, chamado
Sandro, asfixiado pelos policiais
dentro do camburão que o levava
preso. Em julgamento realizado
na semana passada, esses policiais foram absolvidos da acusação de homicídio.
Voltando ao filme. Vemos algumas cenas de menores de rua
cheirando cola. Uma autoridade
em segurança pública explica que
estamos diante de uma "situação
de invisibilidade social", ou algo
assim, e que Sandro buscava, ao
realizar o sequestro, "alçar-se à
condição de protagonista de uma
narrativa que viesse a contestar
seu estado de inexistência no conjunto da sociedade...".
Não pude anotar literalmente a
frase. Não acho que seja absurda.
Mas como falam bem as nossas
autoridades em segurança pública!
Do ex-secretário de Estado ao
carcereiro, passando pelos membros do grupo de elite encarregado de lidar com situações de sequestro, merecem elogios a fluência sintática, a adequação terminológica, a generalizada capacidade de, digamos, "equacionar de
modo verbalmente satisfatório
narrativas com alto potencial desestabilizativo para a corporação".
É um ex-carcereiro quem mostra a cela desativada da 26ª delegacia, chamada de "cofre", onde
Sandro passou um tempo preso.
Conta que os detentos faziam rodízio para dormir, pois não havia
espaço para todos se estenderem
no chão. O ex-carcereiro não
aprova, claro, esse tipo de tratamento. Diz que, de fato, as condições daquele xadrez eram "um
pouco subumanas".
O contraste entre uma realidade brutal e uma grande sofisticação fraseológica é das coisas que
mais me chamaram a atenção no
documentário. Claro que tudo,
desde a primeira cena, chama a
atenção. A imagem do sequestrador, completamente alucinado,
com o revólver em punho, segurando Geísa pelo pescoço, não
deixa dúvidas ao espectador:
Sandro era um bandido perigosíssimo, fora de controle, um verdadeiro demônio. "Transe fáustico", comenta um ex-secretário da
segurança pública.
O filme se dedica, sem dúvida, a
"desconstruir" essa imagem demoníaca de Sandro. Quando ele
tinha seis anos, viu sua mãe ser
assassinada com uma faca de cozinha. Passou a ser criança de
rua. Foi um dos sobreviventes da
chacina da Candelária. Internado várias vezes em campos de
concentração para menores infratores. Assaltos. Drogas. Prisão.
Etc. etc.
Além dessa realidade social demoníaca, sem frase nem explicação, e da linguagem civilizadíssima, racional, euclydiana, com
que se comenta o caso, intervém
no filme um terceiro fator: a circunstância de todo o sequestro ter
sido televisionado.
É como se "Ônibus 174" tentasse
abrir caminho entre duas linguagens: a lógica dos especialistas, de
um lado, e a do espetáculo televisivo, de outro. O mundo da negociação, da razão, do convencimento, que em tese (mas muito
em tese) deveria prevalecer no caso do sequestro, só pôde aparecer
depois de ocorrida a tragédia.
Surge nas análises sociológicas,
na teoria criminalística, na fala
jurídica... O que não é nenhuma
novidade, aliás. Desde "Os Sertões" , pelo menos, a situação tem
sido essa no Brasil.
A oratória póstuma contrasta
com as imagens "ao vivo", com a
linguagem da TV. Aqui, o mundo
é de pura dissimulação. E não só o
bandido como também algumas
das vítimas estão agindo como
atores para as câmeras. Pelo menos, é o que conta uma das sequestradas, com espantosa tranquilidade e inteligência. Não há
argumentos, há "desempenho";
não há razões nem lógica, há jogo
de nervos e presença de espírito.
Os policiais comentam que,
"tecnicamente", o certo seria um
atirador de elite matar Sandro
enquanto ele estava dentro do
ônibus. Mas tudo indica que não
havia autorização para isso simplesmente porque a cena estava
sendo televisionada. Temia-se a
reação dos setores civilizados da
nossa sociedade diante de um assassinato policial ao vivo.
Nada mais típico dessa mesma
sociedade, então, do que Sandro
ter sido morto por asfixia pelos
policiais logo no primeiro momento em que ficou fora do alcance das câmeras de TV.
É também típico, entretanto,
condenar-se a barbárie dos policiais quando se pode ver no documentário a fúria da população
em volta do ônibus, clamando
para que Sandro fosse mesmo assassinado.
E como reagir diferentemente?
Quem visse todo o sequestro pela
TV, impressionando-se com a fúria e a cara do bandido, teria de
fazer muita força para engolir a
idéia de que ele é também uma
vítima da sociedade.
Acho até que, pelo foco narrativo, pela emocionalização de certas cenas, "Ônibus 174" chega a
inocentá-lo demais. Mas o documentário consegue outra coisa.
Supera ao mesmo tempo a linguagem da TV -que joga com o
instantâneo, o impactante, o julgamento precipitado e descartável- e a linguagem acadêmica,
beletrística, oficial -que joga
com o abstrato, com o eufemismo,
com a polidez civilizada... de preferência, nos momentos em que a
polidez e a civilização já nada
mais têm a dizer.
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