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DVD/ LANÇAMENTO
Caetano Veloso lança em DVD seu único longa, "O Cinema Falado", e abre o verbo sobre o cinema brasileiro
cinema falado no grito
SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Muitas palavras do músico Caetano Veloso, adjetivando realizadores e críticos do cinema brasileiro, ficaram represadas nos 17
anos que separam a estréia do
único longa que dirigiu, "O Cinema Falado" (1986), de seu lançamento em DVD, previsto para a
próxima semana.
Não mais. Elas (as palavras de
Caetano) foram ditas em profusão e com momentos de ênfase
colérica, em entrevista para um
grupo de jornalistas, anteontem,
no Rio de Janeiro.
Caetano defendeu (que o Brasil
mantenha aspirações de altas realizações), atacou (o pensamento
acadêmico que condena ao ceticismo e portanto ao imobilismo;
o espírito de corpo dos cineastas
nacionais) e contra-atacou os que
depreciaram seu filme, em especial a Folha. "Burrice agressiva
contra o que me interessa eu não
perdôo nunca".
"O Cinema Falado" é, na definição de seu autor, "quase 100%
composto de falações ou teóricas
ou poéticas ou poético-teóricas,
mas ditas em meio a uma ação relativamente indefinida e mais ou
menos indiferente ao que o texto
está dizendo".
Em exemplos: o baixista Dadi
toca um instrumento, deposita-o
no chão, troca-o por outro, enquanto fala texto (de Caetano)
analisando o preparo intelectual
de Bob Dylan em contraposição à
inconsequência dos Beatles. A
conclusão é que "os Beatles, pelo
caminho das massas, não das elites, nos reorientam no sentido de
estudar o poeta Ezra Pound
[1885-1972]". Portanto, em repercussão sobre a cultura, logram
mais do que Dylan e sua música.
As "opiniões sobre cinema, inclusive as contraditórias, as dúvidas", compõem o trecho de maior
fôlego do filme, em diálogo de Dedé Veloso, ex-mulher de Caetano,
com Felipe Murray.
Nele, Caetano primeiro delineia
um panorama das tensões subjacentes à produção cinematográfica no Brasil, lembrando tratar-se
de um país que não manufatura o
filme, matéria-prima da atividade. Em seguida, interroga o cinema brasileiro e sua ambivalência
com a televisão ("O cinema brasileiro não passou no teste da TV. A
TV passará no teste do cinema?"),
para finalmente auto-indagar:
"Por que fazer filmes? Por que fazer filmes pretensiosos? Por que
fazer filmes sobre filmes?".
Um "sim" à última questão estaria na avaliação positiva que o
diretor faz de sua obra. ""O Cinema Falado" é infinitamente superior a "Araçá Azul" [álbum de
1973]", considerado pela crítica
um disco conceitual e antológico
na trajetória do músico.
Ainda que satisfeito com sua
produção no cinema, Caetano, 61,
dirigiu um único filme, quando
"queria ter feito muitos". Nessa
ausência talvez se insinue uma
resposta negativa à questão sobre
a pertinência do "luxo de fazer filmes pretensiosos no Brasil".
Caetano explica a supressão de
sua carreira cinematográfica porque "é caro fazer filmes" e também pelo desânimo de prosseguir
diante das reações agressivas a "O
Cinema Falado".
Ele acha que a rejeição ao filme
(não apenas por parcela do ambiente intelectual brasileiro, mas
também pela crítica da época) reflete a intolerância a talentos artísticos plurais, resumida na máxima "cada macaco no seu galho".
"Porque sou músico, então sou
obrigado a ser músico. Não posso
ter liberdade", diz.
Comparando "O Cinema Falado" a outros filmes, Caetano reivindica a superioridade do seu:
"Tem muito longa que passa aí
que está muito abaixo desse meu
e que foi até saudado pela crítica.
Você acha que sou bobo? Fui crítico de cinema aos 18 anos. Você
acha que vou ler gente da USP escrevendo na Folha que "Cronicamente Inviável" [Sérgio Bianchi,
98] é um grande filme e vou engolir isso? Aquele abacaxi de caroço?
Isso aqui [aponta para imagens de
"O Cinema Falado" projetadas
atrás de si] é muito melhor. Do
que "A Grande Arte" [Walter Salles, 91] é muito melhor. Uma porcaria, um filme amador, malfeito,
ruim. E ninguém tinha coragem
de dizer isso. Agora, do meu filme, até xingar minha mãe xingaram. Literalmente."
O DVD de "O Cinema Falado"
contém quase três horas de extras,
incluindo dois clipes dirigidos por
Caetano ("Não Tem Tradução",
"Don't Think Twice").
Nas filmagens, o diretor usou
como método filmar apenas um
take de cada sequência. Além dos
já citados, participam do longa
atores, parentes e amigos de Caetano, como Chico Diaz e Hamilton Vaz Pereira (recitando trecho
de "Grande Sertão: Veredas", de
Guimarães Rosa), Regina Casé
(fazendo paródia do ditador cubano Fidel Castro) e Paula Lavigne (analisando a nudez feminina e
a sexualidade no cinema, sob o
prisma de que "a curva da grande
interrogação sobre o sexo passa
necessariamente pelo homossexualismo masculino").
A primeira cena de "O Cinema
Falado" mostra uma reunião de
amigos na casa de Caetano, em
que se distinguem, entre outros,
os cineastas Julio Bressane e Guel
Arraes. O primeiro venceu neste
ano o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, com "Filme de
Amor". O segundo é vice-líder de
público em 2003, com "Lisbela e o
Prisioneiro" (3,1 milhões de espectadores), produzido por Paula
Lavigne, mulher de Caetano.
"Neste momento, os brasileiros
sentem que o cinema brasileiro
atingiu um alto padrão médio. O
povo da rua fala isso. É uma vitória. Mas não é tudo o que nós queremos. É muito bom que, ao mesmo tempo que você tem "Carandiru" e "Lisbela e o Prisioneiro" no
topo do sucesso, você tem um
Festival de Brasília em que nomes
de autores radicais, não-comerciais, experimentais apresentaram o seu melhor", diz.
O CINEMA FALADO (DVD) - Direção:
Caetano Veloso (Brasil, 1986). Preço
médio: R$ 55.
A jornalista Silvana Arantes viajou a
convite da gravadora Universal
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