São Paulo, sábado, 18 de dezembro de 2004

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LIVROS

ROMANCE

Escritora de origem bangladeshi tem lançado no Brasil seu livro de estréia, "Um Lugar Chamado Brick Lane"

A partir de uma rua londrina, Monica Ali cria best-seller global

Jim Watson - 14.out.2003/France Presse
Monica Ali


MARIA BRANT
FREE-LANCE PARA A FOLHA

A história do livro "Um Lugar Chamado Brick Lane" tem algo de conto de fadas.
Há cerca de três anos, Monica Ali era uma gerente de marketing em licença-maternidade que decidiu começar a escrever contos para passar o tempo quando os filhos estavam dormindo. Ela postava as histórias em um site e, em troca de críticas, comentava a produção literária de outros internautas. "Eu já tinha há muito tempo a idéia de que seria legal "ser uma escritora", mas isso é bem diferente de sentir a urgência de escrever", diz. A urgência veio mais tarde, após a morte de um avô. "Há algo em enterros que nos dá impulso -não queria adiar mais nada. Mandei meu marido para fora do quarto com as crianças, fechei as cortinas, sentei-me e comecei a escrever."
Então nasceu "Um Lugar Chamado Brick Lane", que a Rocco acaba de lançar. "Eu nunca tinha publicado nenhuma palavra em toda a minha vida, então a idéia parecia meio louca, mas eu estava obcecada. Acordava no meio da noite para amamentar o bebê e ficava acordada escrevendo."
A um certo ponto, Ali decidiu mostrar os cinco capítulos que já havia escrito a uma amiga redatora, que trabalhava na editora Doubleday. Três dias depois, a escritora recebeu uma proposta de publicação. O manuscrito também foi parar nas mãos do editor da prestigiada revista literária "Granta", Ian Jack, que em 2003 incluiu Ali na lista dos 20 melhores romancistas britânicos da atualidade, que a revista publica a cada dez anos. Ele não tinha nem visto o livro pronto.
Mas, como toda heroína de conto de fadas, Ali teve de enfrentar seus "vilões". Antes de a obra ser publicada, a repórter do "Guardian" Maya Jaggi, de origem asiática, escreveu um artigo em que dizia que Ali havia se recusado a lhe dar entrevista por medo de ser vista "apenas como uma autora de romances étnicos". Segundo a jornalista, Ali teria proposto o nome de outro repórter, branco, em seu lugar. A escritora nega.
Após a publicação, membros da comunidade bangladeshi criticaram Ali por seu retrato "negativo" dos habitantes do leste de Londres. Segundo eles, Ali não é "verdadeiramente bangladeshi", vem de uma família de classe média-alta e, portanto, não teria o direito de escrever sobre imigrantes pobres. Ali nasceu em 1967 em Bangladesh. Mudou-se para a cidade-natal de sua mãe, Bolton (Reino Unido), aos quatro anos, de onde só saiu para estudar política, filosofia e economia em Oxford.
A escritora evita o assunto, dizendo apenas que o número de bangladeshis que elogiou "Um Lugar Chamado Brick Lane" supera o de detratores. De qualquer forma, a polêmica não chegou a abalar o sucesso do livro. Aliada à premiação da "Granta", talvez tenha até ajudado a alavancar as vendas da obra, que, ao ser lançada, em meados de 2003, entrou na lista dos best-sellers britânicos. Ali foi ainda finalista do Man Booker Prize e do prêmio de melhor estréia literária do "Guardian". Pouco mais de um ano após a publicação do livro, ele já havia sido traduzido para 14 línguas.
O sucesso internacional surpreendeu jornalistas ingleses, que viam a obra como "local" demais.
O lugar chamado Brick Lane propriamente dito é conhecido como o centro da culinária "indiana" de Londres. Mas a rua, na fronteira do centro financeiro da capital britânica com o proletário East End, é ocupada principalmente por bangladeshis. Os donos dos negócios, que começaram a chegar ao local nos anos 70 fugindo da guerra civil em sua terra natal, resolveram chamar a comida de indiana porque acharam que atrairiam mais visitantes. Deu certo -hoje, a rua vive lotada de londrinos e turistas-, mas talvez o tiro tenha saído pela culatra.
O ar "autêntico" da área, aliado ao preço do metro quadrado, um pouco menos exorbitante do que no restante da região central de Londres, atraiu artistas e designers, que converteram uma antiga fábrica de cerveja em um conjunto de ateliês. A transformação acabou tornando o local mais palatável para os corretores de ações que trabalham ali perto, e os apartamentos já estão sendo transformados em lofts caríssimos.
O fenômeno fez com que, pela primeira vez na história da rua -que já foi ocupada por huguenotes, irlandeses e judeus russos-, seus ocupantes menos abastados tivessem que deixar o local não para vizinhanças melhores, mas para conjuntos habitacionais, onde Ali decidiu ambientar metade do livro.
É num dos apartamentos administrados pela prefeitura que Nazneen vai morar após seu casamento arranjado com Chanu. A outra metade se passa em Bangladesh, de onde Hasina, sua irmã "bonita demais para seu próprio bem", escreve cartas para a protagonista. Contar mais estragaria a leitura. Basta dizer que as trajetórias das duas irmãs não têm nada de conto de fadas.
Monica Ali concedeu entrevista à Folha, por e-mail, de Londres.
 

Folha - Seu livro é uma espécie de jogo de espelhos. O leitor inglês se vê refletido na visão dos bangladeshis em Londres, e duas imagens de Bangladesh completamente conflitantes, a de Chanu e a de Hasina, são oferecidas. Hasina, por sua vez, trai em suas cartas uma visão idealizada da vida no Primeiro Mundo. Ao escrever o livro, você era mais uma bangladeshi escrevendo sobre a vida no Reino Unido ou uma britânica escrevendo sobre a cultura bangladeshi?
Monica Ali -
Às vezes, uma dessas duas identidades vinha para o primeiro plano e a outra se afastava, mas não penso a meu respeito dentro de nenhuma categoria. Eu sou o que eu sou. Usei muito de minha experiência para escrever o livro, particularmente da minha infância, mas é claro que a habilidade de assumir a perspectiva de um ou outro lado vem do fato de eu ter um pé em cada um deles.


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