São Paulo, sexta, 18 de dezembro de 1998

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O AI-5 e a ditadura em versão light

CARLOS HEITOR CONY

do Conselho Editorial

Assisti ao programa "Observatório da Imprensa", o segundo de uma série, em que diversos jornalistas e intelectuais que viveram os anos de chumbo analisaram o AI-5, cujo 30º aniversário foi motivo para indispensáveis reflexões sobre o período autoritário que nos maltratou durante anos.
Fui convidado a gravar um depoimento, no qual dei a minha opinião, que é a mesma de 30 anos atrás. O AI-5, com seu poderoso instrumental de força, caiu como uma mortalha de aço sobre a sociedade brasileira. De abril de 1964 em diante, vivíamos a escalada do regime discricionário, que progressivamente foi estrangulando os pequenos respiradouros de liberdade que sobreviveram até a vigência do AI-5. A partir de 13 de dezembro de 1968, ficou impossível qualquer combate articulado contra a ditadura e a única opção que se abriu aos resistentes foram os movimentos armados, por meio das guerrilhas urbana e rural.
A falta de lideranças e de apoio explícito da população civil tornou esses movimentos quixotescos, enseada romântica onde os mais radicais desaguaram, muitos deles pagando com a própria vida o preço da contestação.
Fiquei sabendo que, no programa anterior, Fernando Gabeira havia feito a mesma constatação, que foi contradita por dois outros jornalistas que faziam parte do debate. Segundo eles, sobrara a opção política, a solução acadêmica das "condições objetivas", tanto é verdade que o regime autoritário ruiu sem necessidade de ser vencido pela luta armada.
No último bloco do programa, que comentou o atual surgimento dos marqueteiros como criadores do Pensamento Único, acredito que os dois jornalistas se desdisseram e deram obliquamente razão ao raciocínio que Gabeira e eu havíamos formulado.
Janio de Freitas, em artigo desta semana nesta mesma Folha, fez um reparo curioso. Segundo ele, a torrente de matérias e artigos sobre o AI-5 praticamente se fixou num único (e abominável) detalhe: o da censura. Se considerarmos o ato de força baixado pelo presidente Costa e Silva por esse único aspecto, é evidente que o regime autoritário acabou sem necessidade de uma luta proporcional à violência que a sociedade sofreu de 64 até 85.
Mas o AI-5, bem como os atos anteriores, foram além da censura. Criaram a seu modo um Pensamento Único -e grandes parcelas da sociedade, inclusive a maior parte da imprensa, apesar de combater com heroísmo e criatividade a censura, como foi o caso do "Jornal do Brasil" e de "O Estado de S.Paulo", de uma forma genérica apoiaram o núcleo ideológico contido no instrumento decretado em dezembro de 68.
A realidade é essa que aí temos: o regime autoritário em sua versão "light", com Congresso e tribunais abertos, eleições livres e imprensa sem censura formal, ainda não acabou e parece longe de ter um fim. Foi dito, durante o programa, que, embora os militares fossem os autores materiais daquele golpe dentro do golpe, o grande beneficiário teria sido o czar da economia do milagre brasileiro, o ex-ministro Delfim Netto.
Substituindo-se o atual deputado pela equipe econômica de hoje; substituindo-se os tanques pelo rolo compressor presidencial, que não se detém nem mesmo diante de episódios como os revelados pelo jornalista Fernando Rodrigues (compra de votos para aprovação da emenda constitucional que permitiu a reeleição); substituindo-se os órgãos oficiais de informação pelo domínio escrachante das pesquisas e pela atuação dos marqueteiros que, por sua vez, substituíram o "ser" pelo "parecer", podemos constatar que o autoritarismo não acabou.
Com a falência dos ditadores ortodoxos, cujo logotipo preferencial era o tanque no meio da rua, ficou defasado esse recurso para produzir o Pensamento Único. E há mais.
As ditaduras nascem e crescem em torno de uma figura emblemática, geralmente um militar ou um civil militarizado. Eles representam o poder, mas não o expressam. O ditador nada mais é do que o rosto visível de uma casta que empolga a vida de uma nação, dita suas regras e colhe seus benefícios. E, além do mais, há pior. Por sua própria visibilidade, o ditador é obrigado a usar as duas mãos, uma para oprimir o povo, outra para afagá-lo por meio de medidas paternalistas que, em alguns casos, podem ser confundidas com uma política social.
No regime de Pensamento Único que atravessamos, nem mesmo essas migalhas são necessárias à "pax" nacional. A prova disso tivemos nesta semana mesmo, quando ficamos sabendo que o Brasil, em hon- rada companhia de Honduras e Guatemala, figura entre os países onde vigora a mais indecente distribuição de renda.
Os militares voltaram para os quartéis, de onde nunca deveriam ter saído. Ineptos em gerir a sociedade, eles apelaram para a censura, a força, a tortura e o crime. O primarismo deles foi substituído pelos sofisticados esquemas que aí estão, bolados por economistas e marqueteiros. No plano da grande história, o resultado está sendo o mesmo.



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