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O AI-5 e a ditadura em versão light
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Assisti ao programa "Observatório da Imprensa", o segundo de uma série, em que diversos jornalistas e intelectuais
que viveram os anos de chumbo analisaram o AI-5, cujo 30º
aniversário foi motivo para indispensáveis reflexões sobre o
período autoritário que nos
maltratou durante anos.
Fui convidado a gravar um
depoimento, no qual dei a minha opinião, que é a mesma de
30 anos atrás. O AI-5, com seu
poderoso instrumental de força, caiu como uma mortalha de
aço sobre a sociedade brasileira. De abril de 1964 em diante,
vivíamos a escalada do regime
discricionário, que progressivamente foi estrangulando os
pequenos respiradouros de liberdade que sobreviveram até
a vigência do AI-5. A partir de
13 de dezembro de 1968, ficou
impossível qualquer combate
articulado contra a ditadura e
a única opção que se abriu aos
resistentes foram os movimentos armados, por meio das
guerrilhas urbana e rural.
A falta de lideranças e de
apoio explícito da população
civil tornou esses movimentos
quixotescos, enseada romântica onde os mais radicais desaguaram, muitos deles pagando
com a própria vida o preço da
contestação.
Fiquei sabendo que, no programa anterior, Fernando Gabeira havia feito a mesma
constatação, que foi contradita
por dois outros jornalistas que
faziam parte do debate. Segundo eles, sobrara a opção política, a solução acadêmica das
"condições objetivas", tanto é
verdade que o regime autoritário ruiu sem necessidade de ser
vencido pela luta armada.
No último bloco do programa, que comentou o atual surgimento dos marqueteiros como criadores do Pensamento
Único, acredito que os dois jornalistas se desdisseram e deram obliquamente razão ao raciocínio que Gabeira e eu havíamos formulado.
Janio de Freitas, em artigo
desta semana nesta mesma Folha, fez um reparo curioso. Segundo ele, a torrente de matérias e artigos sobre o AI-5 praticamente se fixou num único (e
abominável) detalhe: o da censura. Se considerarmos o ato de
força baixado pelo presidente
Costa e Silva por esse único aspecto, é evidente que o regime
autoritário acabou sem necessidade de uma luta proporcional à violência que a sociedade
sofreu de 64 até 85.
Mas o AI-5, bem como os atos
anteriores, foram além da censura. Criaram a seu modo um
Pensamento Único -e grandes
parcelas da sociedade, inclusive a maior parte da imprensa,
apesar de combater com heroísmo e criatividade a censura, como foi o caso do "Jornal
do Brasil" e de "O Estado de
S.Paulo", de uma forma genérica apoiaram o núcleo ideológico contido no instrumento decretado em dezembro de 68.
A realidade é essa que aí temos: o regime autoritário em
sua versão "light", com Congresso e tribunais abertos, eleições livres e imprensa sem censura formal, ainda não acabou
e parece longe de ter um fim.
Foi dito, durante o programa,
que, embora os militares fossem os autores materiais daquele golpe dentro do golpe, o
grande beneficiário teria sido o
czar da economia do milagre
brasileiro, o ex-ministro Delfim Netto.
Substituindo-se o atual deputado pela equipe econômica de
hoje; substituindo-se os tanques pelo rolo compressor presidencial, que não se detém
nem mesmo diante de episódios como os revelados pelo jornalista Fernando Rodrigues
(compra de votos para aprovação da emenda constitucional
que permitiu a reeleição); substituindo-se os órgãos oficiais de
informação pelo domínio escrachante das pesquisas e pela
atuação dos marqueteiros que,
por sua vez, substituíram o
"ser" pelo "parecer", podemos
constatar que o autoritarismo
não acabou.
Com a falência dos ditadores
ortodoxos, cujo logotipo preferencial era o tanque no meio da
rua, ficou defasado esse recurso
para produzir o Pensamento
Único. E há mais.
As ditaduras nascem e crescem em torno de uma figura
emblemática, geralmente um
militar ou um civil militarizado. Eles representam o poder,
mas não o expressam. O ditador nada mais é do que o rosto
visível de uma casta que empolga a vida de uma nação, dita suas regras e colhe seus benefícios. E, além do mais, há pior.
Por sua própria visibilidade, o
ditador é obrigado a usar as
duas mãos, uma para oprimir o
povo, outra para afagá-lo por
meio de medidas paternalistas
que, em alguns casos, podem ser
confundidas com uma política
social.
No regime de Pensamento
Único que atravessamos, nem
mesmo essas migalhas são necessárias à "pax" nacional. A
prova disso tivemos nesta semana mesmo, quando ficamos sabendo que o Brasil, em hon-
rada companhia de Honduras e
Guatemala, figura entre os países onde vigora a mais indecente distribuição de renda.
Os militares voltaram para os
quartéis, de onde nunca deveriam ter saído. Ineptos em gerir
a sociedade, eles apelaram para
a censura, a força, a tortura e o
crime. O primarismo deles foi
substituído pelos sofisticados
esquemas que aí estão, bolados
por economistas e marqueteiros. No plano da grande história, o resultado está sendo o
mesmo.
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