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"O FANTASMA DO REI LEOPOLDO" - CRÍTICA
Livro relata genocídio esquecido pela história ocidental
JURANDIR MALERBA
especial para a Folha
O livro de Adam
Hochschild, professor de jornalismo
da Universidade de
Berkeley (Califórnia), reverbera na
mente do leitor. Trata-se de uma
trama escrita em cadência quase
ficcional, refinada elaboração que
relata uma história de horrores
-que a civilização ocidental praticamente apagou de sua memória- com estilo erudito e, ao
mesmo tempo, coloquial.
Mas, para além de todos os inegáveis méritos históricos e literários, sua leitura ecoa e persiste na
cabeça do leitor pelas analogias
que suscita com o tempo presente.
O livro denuncia a história da
pilhagem do reino do Congo "belga", tornada praticamente um
feudo particular do rei Leopoldo
2º da Bélgica entre 1885 e 1909.
Não é propriamente, nesse momento áureo do "imperialismo"
clássico, a pilhagem de um território periférico efetuada por um
país ocidental, pois o rei Leopoldo
2º montou uma empresa particular, sua, para exploração daquela
porção do território africano.
Nessa virada de século, ele criou
um exército mercenário para capturar escravos para trabalhar primeiro na produção do marfim,
depois em minas e na coleta do látex para produção da borracha.
Nessa empresa, esse exército
queimou vilas inteiras e aplicou
punições públicas com alto grau
de crueldade e sadismo, como esquartejamento e assassinatos em
massa.
O herói dessa narrativa cruenta
é um agente portuário de Liverpool, Edmund Morel, que um dia
estranhou o movimento de navios que chegavam carregados do
Congo com marfim, bronze e outras riquezas, mas que retornavam cheio de tropas pesadamente
armadas e munidas. Ali, percebeu
que se tratava de uma "troca desigual". Morel abandonou então
seu emprego para se tornar um tipo de jornalista investigativo, lançando uma verdadeira cruzada
para denunciar o holocausto que
ocorria no Congo.
Interessante é que Leopoldo 2º
se apresentava à opinião pública
européia como grande filantropo,
responsável pela "missão civilizadora" da Europa no Ocidente.
Dentre suas maquinações,
Hochschild documenta as investidas sobre o presidente Chester
A. Arthur e até o suborno a um senador americano.
São impagáveis os sutis paralelos que o autor estabelece entre o
regime predatório, centralizado e
autoritário de Leopoldo 2º e as táticas semelhantes de Mobuto Sese
Seko, presidente Congo anos depois.
Após a leitura dessa obra, é difícil não comparar o filantropo rei
belga com monstros da envergadura de Hitler ou Stálin. As semelhanças não param no número
impressionante de vítimas, mas
se desdobram no uso magistral
que fizeram da propaganda e na
habilidade para fazer causa comum com organizações e países
cujos interesses seriam realmente
arruinados por tal aliança.
O Estado Livre do Congo, nome
de fantasia de sua empresa, era
conduzido por verdadeiros sociopatas. Para ter uma dimensão dos
abusos perpetrados, os oficiais
brancos das forças públicas militares recebiam munição quando
saíam para recrutar trabalhadores para as expedições de coleta
do látex.
Para prevenir desperdícios dessa munição, eram obrigados a
apresentar uma mão direita humana para cada bala disparada!
Mas o assassinato não era a causa
maior das mortes entre os congoleses. Havia o trabalho vigiado até
a exaustão, a fome, as fugas.
Paralela a essa história de horrores, o livro de Hochschild conta
o "outro lado", o das poucas pessoas que empreenderam o que
hoje se poderia chamar de uma
"campanha mundial por direitos
humanos". Entre eles está o jornalista e líder negro americano
George Washington Williams,
que foi para o Congo e fundou um
abrigo para ex-escravos.
Em 1890, publicou uma série de
cartas, nas quais denunciava as
atrocidades que testemunhou. As
cartas tiveram ampla repercussão
na Europa e nos Estados Unidos,
apesar das tentativas de boicote
da corte belga. Dez anos após a
morte de Williams, seria a vez de
Morel erguer sua voz, mobilizando nomes de peso da época.
A narrativa de Hochschild, densa como uma novela e rigorosamente documentada como um
trabalho acadêmico, tem, entre
outros méritos, a propriedade de
mostrar as raízes do caos reinante
até hoje na região do Congo.
Eu continuo a pensar com meus
botões de que maneira um genocídio de tais dimensões conseguiu
ser tão eficazmente apagado da
história do século 20. Provavelmente por se tratar apenas de negros, africanos -como poderiam
ter sido latino-americanos, ameríndios ou asiáticos-, não chega
a provocar ferida na consciência
do branco, europeu e civilizado.
Não a ponto de deixar cicatrizes.
Jurandir Malerba é historiador e coordenador do Programa Associado de Pós-Graduação em História UEM/UEL.
Avaliação:
Livro: O Fantasma do Rei Leopoldo
Autor: Adam Hochschild
Tradução: Beth Vieira
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 25 (363 págs.)
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