São Paulo, sexta-feira, 19 de janeiro de 2001

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CINEMA/ESTRÉIAS

"BRAVA GENTE BRASILEIRA"

Diretora faz longa de ficção baseado em episódio verídico da resistência indígena no país

Lúcia Murat volta ao Brasil subterrâneo

SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

A cineasta Lúcia Murat já desvendou no cinema a memória dos porões do regime militar brasileiro ("Que Bom te Ver Viva") e o esquema subterrâneo das campanhas políticas na era da redemocratização ("Doces Poderes"). Em seu terceiro longa, "Brava Gente Brasileira", que chega hoje às telas, é outra vez uma faceta não oficial da história do país que está em foco.
O cenário é o Pantanal mato-grossense, no século 18, onde a tribo indígena Guaicuru resiste aos ataques do branco invasor com engenhosas estratégias.
Lúcia Murat filmou sua ficção de base documental na cidade pantaneira de Bodoquena, onde vive a comunidade indígena Kadiwéu, descendente dos guaicurus. São os próprios kadiwéus que interpretam seus antepassados. Apenas o papel da protagonista Ánote foi entregue a uma atriz profissional, Luciana Rigueira, desempenho premiado no Festival de Brasília como a melhor interpretação feminina.
Além de Luciana, o elenco traz Floriano Peixoto, Leonardo Vil- lar, Sérgio Mamberti, Buza Ferraz e o ator português Diogo Infante. A produção de "Brava Gente Brasileira" custou R$ 1,4 milhão e seu lançamento está orçado em R$ 250 mil. O filme esteve no festival de Toronto (Canadá), chega esta semana ao de Palm Springs, na Flórida, e tem presença acertada em Hong Kong. "Estamos negociando com mais uns cinco ou seis festivais europeus", diz Lúcia.
O próximo projeto da diretora persiste no objetivo de fotografar um Brasil cindido. "Quase Dois Irmãos" terá roteiro assinado pelo escritor Paulo Lins. A guerra silenciosa dos morros cariocas com a classe média urbana será contada por meio da trajetória de três gerações de uma mesma família. "Mas antes preciso de férias", desabafa Lúcia Murat.

Folha - No filme, todos os personagens indígenas, inclusive a protagonista Ánote (Luciana Rigueira), usam exclusivamente a língua kadiwéu. E você optou por não traduzir as falas. Isso não configura "Brava Gente Brasileira" como um filme de certa forma difícil?
Lúcia Murat -
A questão que eu quis trabalhar é a de dois mundos paralelos, que não se tocam. A não-tradução fortalece essa estranheza, essa distância. E o filme foi montado assim, quase como se fosse uma música. Ou seja, em nenhum momento a história é prejudicada por isso. Nunca tive a perspectiva de fazer de "Brava Gente" um filme fechado, ao contrário. Fiz alguns testes com o público em Brasília e no Rio de Janeiro e concluí que as pessoas gostam e são muito capazes de aceitar essa idéia. Não houve ninguém que me pedisse para traduzir, com exceção dos exibidores. Por isso acho que é preconceito.

Folha - Alguns críticos apontaram em "Brava Gente" um engajamento muito marcado, que o enfraqueceria como produto artístico. Você concorda que o filme faz a defesa exaltada de um ponto de vista?
Lúcia -
É absolutamente o contrário. Ouvi algumas pessoas dizerem isso e acho até engraçado. Esse foi um dos filmes mais abertos que já fiz. O roteiro foi mudado inúmeras vezes, até dois meses antes de as filmagens começarem. Portanto o filme mudou muito em seu decorrer. Quando cheguei à montagem, eu tinha inúmeros filmes a serem feitos. Houve cortes imensos na parte branca, muitas discussões sobre papéis, colônias, uma série de coisas. E tudo aquilo não caberia mais no filme se eu quisesse manter a idéia de trabalhar com dois mundos. E ficou um filme seco, os dois mundos vão do início ao fim. Isso implicou uma decisão mais radical do que eu já tinha em minha forma de filmar, que é a de fazer a não-glamourização do mundo branco. Aí você não tem a fruição da violência e do sexo, coisas que o padrão "blockbuster" dá.

Folha - Mas, quando o filme estabelece a concordância da índia em fazer sexo com o europeu que a sequestrou, não há um esvaziamento da tensão em prol do romance?
Lúcia -
Essa é uma obra de ficção, na qual você tem opções. Os personagens e as tensões são criados, como em qualquer obra de ficção. A idéia inicial do filme era mostrar que mesmo o melhor do mundo branco -representado pelo personagem do Diogo- é incapaz de lidar com outra cultura, por mais que queira. A relação dos dois quer mostrar o processo histórico brasileiro, que é essa relação do estupro. Mas há ali também concepções diferentes dos dois mundos sobre amor e sexo. Para ele, aquilo é um processo amoroso, no sentido branco do amor. Para ela, podia ser uma relação de aproximação. O sexo no mundo indígena é muito mais trivial que no mundo branco.

O personagem criado para representar "o melhor do mundo branco" é o único a escapar. Não há aí a redenção do colonizador?
Lúcia -
Sim, claro. Acho que ele é um pouco a gente. Para mim, o Diogo é um pouco o artista. É a nossa imensa capacidade de tentar se aproximar e, mesmo fazendo um monte de merda, ser quem registra a história.


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