São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2002

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LITERATURA

A Folha esteve em dezembro na casa de Gregorio Fuentes, o pescador que foi inspiração para "O Velho e o Mar"

Cuba perde último amigo de Hemingway

FÁBIO VICTOR
EM COJÍMAR (CUBA)

Depois de conhecer três séculos, Gregorio Fuentes agora sonha com leões.
Não importa se ele inspirou Santiago, o simples e complexo personagem de "O Velho e o Mar", de Ernest Hemingway, versão alimentada durante anos e usada para noticiar sua morte no domingo passado -mas que o próprio Gregorio, por reserva ou sinceridade, certa vez rechaçou.
O fato se basta: o homem que morreu aos 104 anos no vilarejo de Cojímar, a 20 km de Havana, era o último elo vivo de Hemingway com Cuba, onde o Prêmio Nobel norte-americano viveu por 22 anos, de 1938 a 1960.
Conheceram-se em 28, quando o pescador ajudou o escritor numa tormenta perto das ilhas Dry Tortuga, no estreito da Flórida, e, desde que Hemingway decidiu se instalar em Cuba, convidou Gregorio para ser o capitão do Pilar -o barco em que ia com o patrão pescar agulhões e no qual os dois caçaram submarinos nazistas na Segunda Guerra Mundial.
Há pouco mais de um mês, em 6 de dezembro, a Folha esteve na pequena casa onde Gregorio Fuentes viveu por 75 anos.
Alquebrado como Santiago após a luta com o marlim azul, o marinheiro estava numa cadeira de rodas e mal conseguia falar. Vestia um boné com a inscrição: "Capitán Gregorio Fuentes".
O câncer na região da garganta produzira uma bola de carne em seu pescoço, mas não o impedira de continuar fumando diariamente seus "puros". Um balde ao lado da cadeira aparava as cusparadas que sucediam as baforadas.
Com a abertura do turismo em Cuba, virara, mesmo em estado quase vegetativo, arrimo de família. Era um museu vivo. Os estrangeiros que visitavam Cojímar descobriam a casa, e nos últimos anos o neto Rafael Valdéz Fuentes, 48, virou uma espécie de guia.
Recebia os visitantes, contava histórias e mostrava recordações da amizade, instava os turistas a tirar fotos e assinar o livro de visitas. Em troca, recebia uns dólares dos encantados forasteiros.
Quase num sussurro, Gregorio disse à Folha que não, os intrusos não incomodavam: "São amigos". No mais, questionado sobre a relação com Hemingway, murmurou: "Era como um pai para mim, um homem muito bom".
E, de fato, escritor e marinheiro deram em vida mostras de um profundo carinho um pelo outro.
Hemingway bebeu em Gregorio para fazer personagens (além de Santiago, o capitão Antonio, de "As Ilhas da Corrente"), deu-lhe o Pilar quando deixou Cuba e, em homenagem ao marujo, batizou seu filho mais novo de Gregory.
Gregorio foi um dos pescadores de Cojímar que arrancaram pedaços de bronze de seus barcos para levantar o busto que até hoje homenageia Hemingway na pracinha à beira-mar da cidade e viveu seus 104 anos a idolatrar "Papa".
Tudo na sua pequena casa de dois quartos lembra a amizade: o quadro na parede com o retrato dos dois, a outra tela reproduzindo uma pescaria de marlim em alto-mar, a vara de pesca herdada do escritor, o surrado boné destacando o seu nobre ofício.
"Vamos manter tudo exatamente igual, todos os objetos ficarão onde estavam, como lembrança dele", disse anteontem à Folha, por telefone, o neto Rafael.


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