São Paulo, segunda-feira, 19 de janeiro de 2004

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ARTIGO

Spalding Gray e os argonautas

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES

Eu ia começar a escrever uma resenha sobre um espetáculo, numa Inglaterra que não tem um teatro -digamos- muito "vivo" ou "vibrante" para oferecer, quando o escritor nova-iorquino Stokes Howell informou que o ator e autor Spalding Gray, um dos fundadores e mentores do Wooster Group e do Performing Garage, havia provavelmente se suicidado.
Desaparecido há vários dias de sua casa nos Hamptons, em Long Island, nos Estados Unidos, e sob tratamento há tempos por Oliver Sacks, Gray, 62, já havia tentado antes o suicídio.
Autor de formato simplérrimo, ele reduziu o espaço cênico a uma mesa e um único elemento -sua autobiografia ele chamou de "Monster in the Box". Durante o espetáculo que batizou como "Swimming to Cambodia", ele se limitava a ficar sentado contando as suas aventuras como ator do filme "The Killing Fields" ("Os Gritos do Silêncio", 85), enquanto o público morria de rir.
O formato da peça "A Casa dos Budas Ditosos" que Fernanda Torres está usando é claramente inspirado no de Gray. Ela mesma o disse em minha última estada no Brasil.
Bem, nesse estado (péssimo e triste) de espírito, vou tentar falar de um dos mais brilhantes, joviais e criativos espetáculos que vi em anos. Trata-se de versão adaptada aos tempos modernos, atenção ao termo "modernos", de "Jason and the Argonauts" -da lenda grega anônima que passou por Homero e outros até Apolonius escrever sua versão definitiva.
E como viemos parar aqui, na versão moderna de Tom Morris e Carl Heap? Em primeiro lugar, é preciso dizer que o conceito de "moderno" toma uma enorme marcha-a-ré, pois Heap, o diretor cênico de fato, é um especialista na cena medieval. A atualização foi feita, mas em pleno Battersea Arts Center, num palco que faz lembrar "Hoje É Dia de Rock" ou "A Midsummer Night's Dream", de Peter Brook, ou até "Gracias Señor", de Zé Celso, só que com figurinos medievais.
Mas é uma delícia. No BAC, ao contrário de outros teatros de Londres, o público é descontraído e as quase três horas passam em meia hora e ninguém dorme. Não assisti a uma única peça aqui em que não se ouvissem os sonoros roncos da platéia nos primeiros 20 minutos. Aqui o público entra com seus copos de cerveja teatro adentro. E, sim, há participação da platéia.
Morris, o autor-adaptador de fato, virou de cabeça para baixo o texto e Heap dirigiu seus atores de forma que não há um segundo em que o público possa respirar. Uma cadeira acaba tendo mil e uma funções. É um teatro pobre no que diz respeito a cenário, porque barril vira canhão que vira escudo que vira casa. O conceito é quase joyceano e cria um "stream of thought". Voa-se literalmente pra lá e pra cá. Os atores são acrobatas -e têm a energia que não havia visto aqui antes.
É preciso conhecer a lenda para entender a montagem? Não, basta o espetáculo em si. A encenação cuida de ser tão brilhante, mostra as mil possibilidades de cada cena (e ainda ri de si mesma no final), é feita com um humor que pisca um olho para a platéia. Como se estivesse querendo cumplicidade e dizendo:
"Olha o teatro, que maravilha. Estamos vivos nesta Inglaterra medieval (ano 2004), contando uma lenda de quase 3.000 anos que ainda faz um sentido incrível neste sistema político hipócrita (o Partido Trabalhista de Tony Blair que se juntou a George W. Bush e invadiu o Iraque). Talvez a única saída seja construir uma barca (nave), ainda que por um bêbado que não entende de navegação, porque, no final, só a mentira do teatro nos salvará."
É isso aí. E que Spalding Gray encontre seus argonautas.


Gerald Thomas é diretor de teatro


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