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ARTIGO
Spalding Gray e os argonautas
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE LONDRES
Eu ia começar a escrever uma
resenha sobre um espetáculo,
numa Inglaterra que não tem um
teatro -digamos- muito "vivo"
ou "vibrante" para oferecer,
quando o escritor nova-iorquino
Stokes Howell informou que o
ator e autor Spalding Gray, um
dos fundadores e mentores do
Wooster Group e do Performing
Garage, havia provavelmente se
suicidado.
Desaparecido há vários dias de
sua casa nos Hamptons, em Long
Island, nos Estados Unidos, e sob
tratamento há tempos por Oliver
Sacks, Gray, 62, já havia tentado
antes o suicídio.
Autor de formato simplérrimo,
ele reduziu o espaço cênico a uma
mesa e um único elemento -sua
autobiografia ele chamou de
"Monster in the Box". Durante o
espetáculo que batizou como
"Swimming to Cambodia", ele se
limitava a ficar sentado contando
as suas aventuras como ator do
filme "The Killing Fields" ("Os
Gritos do Silêncio", 85), enquanto
o público morria de rir.
O formato da peça "A Casa dos
Budas Ditosos" que Fernanda
Torres está usando é claramente
inspirado no de Gray. Ela mesma
o disse em minha última estada
no Brasil.
Bem, nesse estado (péssimo e
triste) de espírito, vou tentar falar
de um dos mais brilhantes, joviais
e criativos espetáculos que vi em
anos. Trata-se de versão adaptada
aos tempos modernos, atenção ao
termo "modernos", de "Jason and
the Argonauts" -da lenda grega
anônima que passou por Homero
e outros até Apolonius escrever
sua versão definitiva.
E como viemos parar aqui, na
versão moderna de Tom Morris e
Carl Heap? Em primeiro lugar, é
preciso dizer que o conceito de
"moderno" toma uma enorme
marcha-a-ré, pois Heap, o diretor
cênico de fato, é um especialista
na cena medieval. A atualização
foi feita, mas em pleno Battersea
Arts Center, num palco que faz
lembrar "Hoje É Dia de Rock" ou
"A Midsummer Night's Dream",
de Peter Brook, ou até "Gracias
Señor", de Zé Celso, só que com
figurinos medievais.
Mas é uma delícia. No BAC, ao
contrário de outros teatros de
Londres, o público é descontraído
e as quase três horas passam em
meia hora e ninguém dorme. Não
assisti a uma única peça aqui em
que não se ouvissem os sonoros
roncos da platéia nos primeiros
20 minutos. Aqui o público entra
com seus copos de cerveja teatro
adentro. E, sim, há participação
da platéia.
Morris, o autor-adaptador de
fato, virou de cabeça para baixo o
texto e Heap dirigiu seus atores de
forma que não há um segundo em
que o público possa respirar. Uma
cadeira acaba tendo mil e uma
funções. É um teatro pobre no
que diz respeito a cenário, porque
barril vira canhão que vira escudo
que vira casa. O conceito é quase
joyceano e cria um "stream of
thought". Voa-se literalmente pra
lá e pra cá. Os atores são acrobatas
-e têm a energia que não havia
visto aqui antes.
É preciso conhecer a lenda para
entender a montagem? Não, basta
o espetáculo em si. A encenação
cuida de ser tão brilhante, mostra
as mil possibilidades de cada cena
(e ainda ri de si mesma no final), é
feita com um humor que pisca
um olho para a platéia. Como se
estivesse querendo cumplicidade
e dizendo:
"Olha o teatro, que maravilha.
Estamos vivos nesta Inglaterra
medieval (ano 2004), contando
uma lenda de quase 3.000 anos
que ainda faz um sentido incrível
neste sistema político hipócrita (o
Partido Trabalhista de Tony Blair
que se juntou a George W. Bush e
invadiu o Iraque). Talvez a única
saída seja construir uma barca
(nave), ainda que por um bêbado
que não entende de navegação,
porque, no final, só a mentira do
teatro nos salvará."
É isso aí. E que Spalding Gray
encontre seus argonautas.
Gerald Thomas é diretor de teatro
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