São Paulo, sábado, 19 de janeiro de 2008

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crítica

Quiroga escreve para crianças de forma inusitada

MICHEL LAUB
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ficção infanto-juvenil costuma ser avaliada com certa condescendência, mais comprometida com a formação do cidadão que com a do leitor.
Não é difícil perceber os resultados desse paternalismo: histórias politicamente corretas, com temas que tentam aproximar a literatura da "realidade cotidiana" ou despertar a consciência para a diversidade social, étnica e religiosa do mundo, freqüentemente ganham elogios e adoções em escolas na mesma medida em que sua estética insossa é ignorada.
Diante de um cenário assim, é promissor o lançamento de uma coletânea como "Contos da Selva" (1918), do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937). Anunciado como infanto-juvenil, mas talvez mais próximo das narrativas para crianças, o livro chama atenção por abdicar de um caráter utilitário, que emprestaria às suas histórias uma pregação ecológica ou um sentido moral.
Quiroga obtém esse resultado, quase sempre, experimentando com as convenções da fábula e do causo. No primeiro caso, em textos como "O Papagaio Pelado", cujo protagonista se vinga de uma onça que o atacou indicando seu paradeiro a um caçador, tem-se os bichos que falam e agem como humanos, mas não a lição edificante no desfecho. No segundo, a verossimilhança e coerência narrativa do causo são abandonadas em textos como "As Meias dos Flamingos", talvez a mais inusitada de todas, em que pássaros entram fantasiados num baile de cobras e passam o resto da vida pagando pelo erro.
Resta saber se ambas as soluções, cuja originalidade é louvável, mas externa à fruição estética das histórias, são suficientes para garantir o valor literário de "Contos da Selva". A resposta é difícil, até porque há contos que fogem à regra aqui descrita, como "A Abelhinha Malandra", fábula tradicional e previsível, ou "A Tartaruga Gigante", sem a densidade que transforma o relato em literatura.
Por outro lado, há qualidades inegáveis na prosa de Quiroga: o classicismo elegante, que ficaria bem num texto contemporâneo, e a generosidade descritiva, que torna acessível o mundo então pouco explorado de bichos e plantas das províncias argentinas -lugares onde o autor viveu muitos anos.
Somada a isso, a capacidade de comover em construções simples como "A Gama Cega", sobre um veado salvo por um caçador, ou "História de Dois Filhotes de Quati e de Dois Filhotes de Homem", que mostra uma convivência terna entre as espécies, dão ao livro um balanço positivo. Não para transformá-lo num clássico, mas o bastante para ser lido com interesse quase um século depois de sua publicação.


MICHEL LAUB é autor dos romances "Longe da Água" e "O Segundo Tempo"

CONTOS DA SELVA
Autor:
Horacio Quiroga
Tradução: Wilson Alves-Bezerra
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 29 (128 págs.)
Avaliação: bom


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