São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

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GASTRONOMIA

Para onde está indo a cozinha?

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

O chef Andoni Luiz Aduriz é basco e dono do Mugaritz, restaurante de uma estrela só perto de San Sebastián, Espanha. Esteve por São Paulo na semana passada, assisti a sua aula, comi de sua comida.
Andoni tem 33 anos e é flaquito, franzino, uma mistura de um baixo Anthony Perkins baixinho (com a mãe de "Psicose" no andar de cima) e um Hamlet meditabundo, austero, cheio de perguntas. Ele pensa, é um chef que pensa e se angustia, ele deseja o melhor ingrediente possível, mastiga ervas amargas, escolhe coquinhos improváveis, o chef pensa e ousa.
Na sala de aula, a certa altura, senti um mal-estar indefinível como uma madeleine mal digerida. O chef, olhos ardentes de perseverança e obsessão, falava e escrevia no quadro (Paco cozinhava).
O que falava ele, o discípulo dos mais modernos chefs, do núcleo que se concentra hoje na Espanha, inspirado por Ferran Adrià?
Repetia as normas básicas da nouvelle cuisine, seu amor pelos ingredientes frescos e inusitados, contanto que se mesclassem com doçura ao terroir basco: "O chique é um tomate maduro, e não um garfo de ouro. Tomate maduro no pé é coisa difícil, talheres de ouro são risíveis".
Eram obviedades, mas a lousa já se enchia de números, flechas e sinais matemáticos. Logo, seu linguajar para descrever as receitas que Paco fazia começou a ter palavras como convecção, radiação, gel, colágeno, moléculas, proteínas, coagulantes. Carnes que cozidas em 35 horas conservavam seu formato, ovos de 30 minutos, o "sous-vide"...
Pois bem, era isso. Era isso que me incomodava e me fazia lembrar... o quê? Aulas de física e química jamais digeridas inteiramente, a matemática claudicante dos colégios de freiras. E ele, o chef, estava ali, fazendo a biópsia do ingrediente, que era batido, dissecado, moldado, esticado, até o máximo de suas possibilidades.
Senti que havia que entrar para a escola outra vez. A nossa galinha, o nosso ovo, a minha farofa, jamais chegariam aos pés dos de Andoni, o chef basco, simplesmente porque ignoramos as proporções de gordura para água, não medimos os ingredientes em milímetros, não sabemos adequar o cozimento à proporção do colágeno, não intuímos a mais ínfima verdade sobre o torresmo.
E aí me lembrei do Eça, do velho Eça e da casa de Jacinto em Paris, repleta de gadgets, o cientificismo tão em voga e o peixe encalhado no elevador, tentando ser pescado pelos convivas. E me lembrei da transmutação do Jacinto citadino ao chegar ao campo. Seu encantamento em Tormes, ao ser servido de um arroz de favas e de um frango que tinha fígado e tinha moela, por uma moçoila de peitos frementes.
Ah, mas que romântico o nosso Eça! A ciência chegou de vez à cozinha para nos ajudar a fazer uma comida melhor. Desconfio que para ficar. Pode demorar, mas acaba se instalando de vez. Nada como a técnica. O bacalhau de Andoni não perdeu seus sucos, o foie se sustentou rijo como quando estava dentro do ganso, as fusões executadas se fundiam de verdade, tudo era pensado com a cabeça e traduzido em emoção, que a ciência também é poesia.
O único problema que meu arrepio antevia era que não conseguíssemos nunca alcançar os segredos; mas quem disse que é preciso entender tudo? Eles, os devotos, os obsessivos, os missionários, que estudem, se tornem perfeitos e nos ensinem a prática. Pois quem de nós não acende a luz, liga o DVD, fala ao celular, tudo no salto alto de nossa profunda ignorância?
Vai chegar o dia, foi o que percebi nas aulas do chef Andoni Luiz Aduriz, que vamos nos levantar às seis da manhã para calmamente fazermos o ovo de 35 minutos e com toda a naturalidade vamos pedir no restaurante -"Salta aí um bife de bochecha de vaca de 40 horas, de comer de colher, com lágrimas de legumes!!!!"
Não estou exagerando. O homem não sabe mais o que inventar para ser feliz, e isso é bonito.
Receitas do chef podem ser solicitadas no meu e-mail.

ninahort@uol.com.br


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