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GASTRONOMIA
Para onde está indo a cozinha?
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
O chef Andoni Luiz Aduriz é
basco e dono do Mugaritz,
restaurante de uma estrela só perto de San Sebastián, Espanha. Esteve por São Paulo na semana
passada, assisti a sua aula, comi de
sua comida.
Andoni tem 33 anos e é flaquito,
franzino, uma mistura de um baixo Anthony Perkins baixinho
(com a mãe de "Psicose" no andar
de cima) e um Hamlet meditabundo, austero, cheio de perguntas. Ele pensa, é um chef que pensa e se angustia, ele deseja o melhor ingrediente possível, mastiga
ervas amargas, escolhe coquinhos
improváveis, o chef pensa e ousa.
Na sala de aula, a certa altura,
senti um mal-estar indefinível como uma madeleine mal digerida.
O chef, olhos ardentes de perseverança e obsessão, falava e escrevia
no quadro (Paco cozinhava).
O que falava ele, o discípulo dos
mais modernos chefs, do núcleo
que se concentra hoje na Espanha, inspirado por Ferran Adrià?
Repetia as normas básicas da
nouvelle cuisine, seu amor pelos
ingredientes frescos e inusitados,
contanto que se mesclassem com
doçura ao terroir basco: "O chique é um tomate maduro, e não
um garfo de ouro. Tomate maduro no pé é coisa difícil, talheres de
ouro são risíveis".
Eram obviedades, mas a lousa já
se enchia de números, flechas e sinais matemáticos. Logo, seu linguajar para descrever as receitas
que Paco fazia começou a ter palavras como convecção, radiação,
gel, colágeno, moléculas, proteínas, coagulantes. Carnes que cozidas em 35 horas conservavam seu
formato, ovos de 30 minutos, o
"sous-vide"...
Pois bem, era isso. Era isso que
me incomodava e me fazia lembrar... o quê? Aulas de física e química jamais digeridas inteiramente, a matemática claudicante
dos colégios de freiras. E ele, o
chef, estava ali, fazendo a biópsia
do ingrediente, que era batido,
dissecado, moldado, esticado, até
o máximo de suas possibilidades.
Senti que havia que entrar para
a escola outra vez. A nossa galinha, o nosso ovo, a minha farofa,
jamais chegariam aos pés dos de
Andoni, o chef basco, simplesmente porque ignoramos as proporções de gordura para água,
não medimos os ingredientes em
milímetros, não sabemos adequar
o cozimento à proporção do colágeno, não intuímos a mais ínfima
verdade sobre o torresmo.
E aí me lembrei do Eça, do velho
Eça e da casa de Jacinto em Paris,
repleta de gadgets, o cientificismo
tão em voga e o peixe encalhado
no elevador, tentando ser pescado
pelos convivas. E me lembrei da
transmutação do Jacinto citadino
ao chegar ao campo. Seu encantamento em Tormes, ao ser servido
de um arroz de favas e de um
frango que tinha fígado e tinha
moela, por uma moçoila de peitos
frementes.
Ah, mas que romântico o nosso
Eça! A ciência chegou de vez à cozinha para nos ajudar a fazer uma
comida melhor. Desconfio que
para ficar. Pode demorar, mas
acaba se instalando de vez. Nada
como a técnica. O bacalhau de
Andoni não perdeu seus sucos, o
foie se sustentou rijo como quando estava dentro do ganso, as fusões executadas se fundiam de
verdade, tudo era pensado com a
cabeça e traduzido em emoção,
que a ciência também é poesia.
O único problema que meu arrepio antevia era que não conseguíssemos nunca alcançar os segredos; mas quem disse que é preciso entender tudo? Eles, os devotos, os obsessivos, os missionários, que estudem, se tornem perfeitos e nos ensinem a prática.
Pois quem de nós não acende a
luz, liga o DVD, fala ao celular, tudo no salto alto de nossa profunda
ignorância?
Vai chegar o dia, foi o que percebi nas aulas do chef Andoni Luiz
Aduriz, que vamos nos levantar às
seis da manhã para calmamente
fazermos o ovo de 35 minutos e
com toda a naturalidade vamos
pedir no restaurante -"Salta aí
um bife de bochecha de vaca de 40
horas, de comer de colher, com lágrimas de legumes!!!!"
Não estou exagerando. O homem não sabe mais o que inventar para ser feliz, e isso é bonito.
Receitas do chef podem ser solicitadas no meu e-mail.
ninahort@uol.com.br
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