São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONTOS/"DELTA DE VÊNUS"

Tempo não é cruel com Anaïs Nin

Edward Weston/Associated Press/Philips Collection
"Nu", obra de 1936 do fotógrafo americano Edward Weston


ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há livros cujas histórias parecem superar qualquer expectativa que se possa ter sobre seus conteúdos. É esse o caso dos contos eróticos que Anaïs Nin reuniu sob o título "Delta de Vênus". Apesar do inegável poder de atração do erotismo literário e da curiosidade que esse tipo de texto costuma provocar, a ficção obscena da autora não consegue suscitar tanto interesse quanto a formidável história de seu livro.
Tudo começou em Paris, no final da década de 1930, quando ela conheceu Henry Miller. Tendo se tornado grande amiga e amante do escritor, compartilhava com ele o sonho de sobreviver de literatura numa cidade que, na época, era uma espécie de Meca dos artistas norte-americanos.
Foi para remediar as contas de um orçamento precário que ela decidiu escrever histórias eróticas, atendendo a encomenda de um colecionador que lhe pagava US$ 1 por página. Na verdade, o convite havia sido feito originalmente a Miller, mas este logo declinou por julgar a atividade "castradora" em termos de criação.
Os pormenores dessa curiosa história estão registrados no terceiro volume do famoso "Diário" da escritora, que "Delta de Vênus" apresenta em versão resumida. Anaïs Nin conta que, no empenho de se concentrar na descrição das cenas sexuais, passou dias e dias em uma biblioteca, estudando desde a arte erótica do "Kama Sutra" até o compêndio de Kraft-Ebing sobre as perversões. O resultado é uma obra ousada, que enfrenta temas delicados como a bissexualidade, o incesto e o estupro.

Mais vendido
Texto corajoso, sobretudo, se lembrarmos que foi criado no início dos anos 40 e, ainda mais, por uma mulher. Talvez isso explique sua edição tardia, uma vez que só veio a público em 1977, logo após a morte da escritora. Anaïs Nin não pôde testemunhar, portanto, o estrondoso sucesso do volume, que, uma vez lançado, se manteve durante 36 semanas nas listas dos best-sellers do país.
"Delta de Vênus" foi o livro certo na hora certa. Sua recepção se beneficiou da voga de publicações voltadas para a conquista da liberdade sexual que, na década de 70, rendeu títulos de enorme popularidade como "O Relatório Hite", "A Mulher Sensual" ou "Os Prazeres do Sexo". Some-se a isso o fato de ter sido considerada a primeira ficção obscena de língua inglesa escrita por uma mulher, justamente num momento em que a sexualidade feminina se tornava objeto de grande atenção. Cultuados pelas feministas, os contos de Nin lançavam luz sobre a enigmática diferença das mulheres.
Com uma trajetória assim tão rica, seria de supor que o livro reservasse boas surpresas também na leitura. Mas o texto não cumpre a promessa. A tentativa de criar uma escrita erótica em sintonia com as emoções, o que, para a autora, definiria a voz feminina, muitas vezes desemboca num certo tom sentimental que neutraliza a violência poética do erotismo literário.
Lido à luz de sua história, porém, "Delta de Vênus" pode oferecer ao leitor um vislumbre das tensões sobre o sexo que transformaram em definitivo a paisagem sensível do século 20.


Eliane Robert Moraes é professora de estética e literatura na PUC-SP e no Senac. Publicou, entre outros, "O Corpo Impossível" (Iluminuras)
Delta de Vênus
   
Autora: Anaïs Nin
Editora: L&PM Pocket
Quanto: R$ 19 (304 págs.)


Texto Anterior: Livros - Ensaio: Com título equivocado, seleção examina escritores clássicos
Próximo Texto: Vitrine brasileira/Não-ficção - Teatro: O rosto de Shakespeare
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.