São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2005

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DRAUZIO VARELLA

Estratégias sexuais

A seleção natural prestigia a capacidade reprodutiva dos competidores, não a de sobrevivência. Como previu Charles Darwin, que vantagem genética leva um organismo com características que lhe asseguram boa saúde e longevidade se for infértil?
Salvo poucas exceções, a energia investida pelas fêmeas para gerar e cuidar da prole é o fator limitante do crescimento populacional. O filho que consegue sobreviver até atingir a maturidade sexual é que assegura a permanência dos genes maternos nas gerações futuras. O número de parceiros sexuais que a mãe teve não vem ao caso.
Nos machos, o sucesso reprodutivo depende diretamente da capacidade de fertilizar óvulos. Desde que a vida sexuada surgiu na Terra, há pelo menos 1 bilhão de anos, foram consagradas duas estratégias masculinas: poligamia e monogamia. Ambas têm riscos e benefícios que precisam ser avaliados pelo macho com cuidado extremo, sob pena de seus genes desaparecerem do mapa.
A poligamia é extremamente popular na escala animal, porque confere as vantagens de explorar simultaneamente a capacidade reprodutiva de várias fêmeas e de dar origem a descendentes com maior diversidade genética. Em contrapartida, expõe aos perigos de enfrentar competidores ciumentos e adquirir doenças causadoras de esterilidade, à incerteza de encontrar parceiras no período fértil e à menor probabilidade de sobrevivência da prole criada sem o pai por perto.
Apesar de impor limites rígidos ao número de filhos que um macho poderá gerar, a monogamia tem a vantagem de facilitar o acesso à ovulação, impor barreiras à infidelidade feminina e proporcionar cuidados paternos.
Estudos recentes abalaram o paradigma tradicional de que o macho, por ser fisicamente mais forte na maioria das espécies, impõe seus genes à descendência das fêmeas. Pesquisas genéticas em insetos, tartarugas, aves e em praticamente todos os mamíferos demonstram que a infidelidade feminina é arma decisiva no processo de seleção natural.
Nos pássaros, por exemplo, a necessidade de construir ninhos, protegê-los e alimentar os filhotes é considerada justificativa para o comportamento monogâmico de várias espécies, porque os machos só investiriam tanta energia quando seguros da paternidade. Mas pesquisas têm revelado que a poligamia entre pássaros é muito mais freqüente do que se imaginava. Patrícia Gowaty, da Universidade da Geórgia, ao testar DNA em 180 espécies de pássaros cantores acasalados em liberdade segundo padrões aparentemente monogâmicos, verificou que apenas cerca de 10% dos filhotes carregavam os genes do pai social.
Para entender essa discordância entre monogamia social e sexual, não se pode invocar a justificativa clássica da violência masculina, porque, nas espécies estudadas, não apenas a fecundação exige participação ativa da fêmea como esta consegue eliminar o esperma ejaculado se assim o desejar.
Da mesma forma que em outros vertebrados, por mecanismos mal conhecidos, as fêmeas dos pássaros cantores parecem concordar umas com as outras no reconhecimento de qual dos machos é o detentor dos genes mais cobiçados. Para tanto, baseiam-se no repertório de canções executadas, na riqueza da plumagem e em detalhes do comportamento. Essas características nem sempre são encontradas no parceiro social escolhido com base no território que é capaz de defender e pela habilidade em construir ninhos e alimentar filhotes.
No final dos anos 1990, pesquisadores da Universidade da Califórnia realizaram exames de DNA nos pais e filhos de uma espécie de ratos da Califórnia considerados modelo de monogamia. De fato, acompanhando 28 famílias desses ratos durante dois anos, não foi identificado um único filhote concebido por outro pai que não o social. A explicação encontrada para esse nível de lealdade afetiva é a de que esses animais vivem no topo de montanhas congeladas, nas quais os filhotes nascem no período mais frio do ano: para sobreviver, precisam ser aquecidos permanentemente pelos pais, cujos corpos se revezam sobre o deles. Se o pai vai embora ou é retirado do local, a mãe mata ou abandona os filhotes à própria sorte.
As forças evolutivas representadas pelos hormônios envolvidos na definição da estratégia sexual começam a ser decifradas. Trabalhos experimentais demonstram que a repetição das relações sexuais entre um casal provoca liberação de ocitocina na circulação feminina, hormônio associado ao comportamento maternal e à lactação. No macho, a repetição estimula a produção de vasopressina, relacionada com a agressividade e o comportamento paterno. Quando a produção desses hormônios durante o acasalamento é bloqueada experimentalmente, não ocorre ligação estável entre os parceiros.
Ocitocina e vasopressina são hormônios encontrados em todos os mamíferos. Fisiologicamente, o que varia de uma espécie para outra é a região do cérebro em que eles exercem sua ação.
Em matéria de sexo, o Homo sapiens está mais para passarinho cantor do que para rato de montanha gelada, comportamento compartilhado pela quase totalidade dos demais mamíferos, seres naturalmente infiéis, entre os quais somente 3% a 10% adotam a monogamia social como estratégia de convivência, números que superestimam os índices de fidelidade conjugal.


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