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Em blog, autora une o sublime e o banal
Em coluna mensal no site do "New York Times", escritora narra eventos de trivialidade mínima com densidade máxima
Maira Kalman desenha sobre as fotos e escreve em cima dos desenhos, além
de discorrer sobre temas como o envelhecimento
NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Em primeiro lugar, encontre
alguma maneira de se livrar das
dezenas de spam que você vai
receber diariamente. Em segundo, assine o "New York Times" virtual (www.nytimes.
com), por US$ 7,50 mensais.
Você vai conhecer muitas coisas interessantes e desinteressantes do jornal mais importante da América do Norte.
Mas isso não tem a menor
importância, porque, toda primeira quarta-feira do mês, você vai entrar no blog de Maira
Kalman (palavra de que a própria autora não gosta e que
chama de coluna). Essa coluna,
"Principles of Uncertainty"
(princípios da incerteza), é como uma pequena cápsula de
meditação urbana, que você toma de forma concentrada nessa quarta-feira e que vai paulatinamente soltando seu efeito a
cada dia, até o mês seguinte.
O nome já é contraditório. Se
é incerto, não é princípio; é intuição, é imaginação. Mas não.
Kalman desliza pela e por causa da incerteza, transformando-a mesmo num eixo condutor: suas imagens e textos são feios e bonitos, ou bonitos porque feios e vice-versa; envelhecer torna-se algo gracioso e desejável; o inútil surge como a
coisa mais necessária da vida.
Todo mês Kalman escolhe
um recorte sobre uma cidade,
alguém da família, um gesto ou
cena. A partir desse tema bem
abrangente, ela fotografa, desenha sobre as fotos e escreve sobre os desenhos. São imagens e
palavras que misturam a trivialidade mínima -pessoas comuns andando de costas, um
bolo de padaria, um prendedor
de roupa- com uma densidade
máxima -frases de Dostoiévski, de Nietzsche, pensamentos
sobre a morte e o porquê das
coisas serem como são.
E o resultado é, inevitavelmente, perceber que, se olharmos bem, um prendedor de
roupa contém questões profundamente existenciais e estéticas. Como a autora diz: "Será que uma emoção por causa
de um acontecimento pessoal é
mais grandiosa ou mais banal
do que ler Descartes?".
São as duas coisas, e uma não
existiria sem a outra. O certo é
que, se Descartes não precisou
confrontar-se com a solidão
inarredável de um prendedor
de roupa, ele sem dúvida deveria. E o resultado são centenas
de leitores de todas as partes
dos EUA, velhinhas, jovens, desenhistas, futuros escritores,
todos acalentados pela beleza
de um estranhamento.
Que bom que um jornal do
porte do "Times" ainda possa
abrir espaço para uma coluna
inclassificável, sem forma nem
linguagem definidas. Kalman é
ilustradora, escritora e designer. Já fez inúmeras capas para
a "New Yorker" e escreveu
mais de 12 livros infantis. Fez
desenhos de tecidos para Isaac
Mizrahi e vários acessórios em
exposição no Museu de Arte
Moderna de Nova York. Mora
em Nova York e falou à Folha
por e-mail.
FOLHA - Como é o processo de
composição de seu blog?
MAIRA KALMAN - O processo é
orgânico. Eu caminho pelas
ruas e leio e tiro fotos e penso
sobre as coisas, e um tema surge. Talvez uma mini-obsessão
do mês. Depois eu rabisco e colho mais imagens e tropeço em
mais fragmentos e depois junto
tudo. Depois escrevo e reescrevo e desescrevo.
FOLHA - Como você chegou à idéia
de criar um blog?
KALMAN - Eu não gosto da palavra blog. Blog soa como arrotar
ou cuspir o que está na cabeça,
de uma maneira apressada. O
que eu tenho é uma coluna ou
uma mini-história. Então me
desculpe se eu prefiro a palavra
coluna. Os editores da página
virtual me perguntaram se eu
queria. Eles queriam uma coluna ilustrada que fosse pessoal e
narrativa. Além disso, eles não
me deram limites.
FOLHA - Sua coluna mistura o banal e o denso. Qual é a diferença?
KALMAN - Não há possibilidade
de distinção entre o sublime e o
trivial. É impossível alguém
funcionar sem os dois e, na
maior parte do tempo, ninguém tem certeza sobre qual é
qual. Será que uma emoção por
causa de um acontecimento
pessoal é mais grandiosa ou
mais banal do que ler Descartes? O cérebro está tentando
resolver problemas o tempo todo. Não faz sentido categorizar
as coisas. Mas, se eu tivesse que
dizer algo sobre as coisas pequenas da vida, diria que elas
me dão um prazer muito intenso.
FOLHA - Você parece ter ligação especial com a velhice. É uma resposta
a uma histeria atual de juventude?
KALMAN - A gente passa a vida
tentando descobrir como viver
e como morrer. É um processo
que nos consome, quer a gente
goste ou não. É claro, quando a
gente envelhece, a noção do fim
é mais real e terrível. Mas daí as
distrações (o trabalho) se tornam mais prazerosas. E o amor.
E as flores. Tudo cresce. Eu
amo as crianças e os velhos do
mesmo jeito. Mas é claro que é
triste que o desejo de permanecer-aparentar a juventude tenha atingido picos histéricos.
Eu espero que todos possamos
envelhecer com graça, embora
isso talvez não seja possível.
Demora muito tempo para se
dar valor a uma coisa que está
por aí há muito tempo.
FOLHA - O fato de você ser judia e
nova-iorquina é uma condição inescapável para o seu trabalho?
KALMAN - Os meus pais saíram
da Rússia para Israel nos anos
30. Essa realidade definiu os
sentimentos deles e a maneira
como eles nos criaram. O Holocausto era uma realidade constante na minha família. Nós
carregávamos essa noção da
fragilidade da vida misturada a
uma determinação e flexibilidade quando nos mudamos para Nova York. Mas nós sempre
nos consideramos estrangeiros, o que acho que foi na verdade uma coisa boa. Me fez olhar
e ouvir. Algo que eu ainda amo
fazer. A minha família também
tinha um incrível senso de humor. Era uma parte muito importante nas nossas vidas. E a
cultura. E a comida.
FOLHA - Você encontra beleza em
cenas aparentemente feias. O que é
a beleza para você?
KALMAN - Eu não sei definir isso muito bem. A beleza está
presente de muitas formas. Na
integridade do desenho. Na arte gloriosa. No humor. Na determinação. Por que um bobe é
belo? Por que Matisse é belo?
FOLHA - As respostas à sua coluna
são afetuosas. Isso se deve a algum
tipo de falta de afeto urbano?
KALMAN - Acho que eu sou uma
pessoa afetiva com certa dose
de reserva. Acho que todos se
sentem assim. Muito solitários,
às vezes. O que se pode fazer?
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