São Paulo, segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

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Em blog, autora une o sublime e o banal

Em coluna mensal no site do "New York Times", escritora narra eventos de trivialidade mínima com densidade máxima

Maira Kalman desenha sobre as fotos e escreve em cima dos desenhos, além de discorrer sobre temas como o envelhecimento

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Em primeiro lugar, encontre alguma maneira de se livrar das dezenas de spam que você vai receber diariamente. Em segundo, assine o "New York Times" virtual (www.nytimes. com), por US$ 7,50 mensais. Você vai conhecer muitas coisas interessantes e desinteressantes do jornal mais importante da América do Norte.
Mas isso não tem a menor importância, porque, toda primeira quarta-feira do mês, você vai entrar no blog de Maira Kalman (palavra de que a própria autora não gosta e que chama de coluna). Essa coluna, "Principles of Uncertainty" (princípios da incerteza), é como uma pequena cápsula de meditação urbana, que você toma de forma concentrada nessa quarta-feira e que vai paulatinamente soltando seu efeito a cada dia, até o mês seguinte.
O nome já é contraditório. Se é incerto, não é princípio; é intuição, é imaginação. Mas não. Kalman desliza pela e por causa da incerteza, transformando-a mesmo num eixo condutor: suas imagens e textos são feios e bonitos, ou bonitos porque feios e vice-versa; envelhecer torna-se algo gracioso e desejável; o inútil surge como a coisa mais necessária da vida.
Todo mês Kalman escolhe um recorte sobre uma cidade, alguém da família, um gesto ou cena. A partir desse tema bem abrangente, ela fotografa, desenha sobre as fotos e escreve sobre os desenhos. São imagens e palavras que misturam a trivialidade mínima -pessoas comuns andando de costas, um bolo de padaria, um prendedor de roupa- com uma densidade máxima -frases de Dostoiévski, de Nietzsche, pensamentos sobre a morte e o porquê das coisas serem como são.
E o resultado é, inevitavelmente, perceber que, se olharmos bem, um prendedor de roupa contém questões profundamente existenciais e estéticas. Como a autora diz: "Será que uma emoção por causa de um acontecimento pessoal é mais grandiosa ou mais banal do que ler Descartes?".
São as duas coisas, e uma não existiria sem a outra. O certo é que, se Descartes não precisou confrontar-se com a solidão inarredável de um prendedor de roupa, ele sem dúvida deveria. E o resultado são centenas de leitores de todas as partes dos EUA, velhinhas, jovens, desenhistas, futuros escritores, todos acalentados pela beleza de um estranhamento.
Que bom que um jornal do porte do "Times" ainda possa abrir espaço para uma coluna inclassificável, sem forma nem linguagem definidas. Kalman é ilustradora, escritora e designer. Já fez inúmeras capas para a "New Yorker" e escreveu mais de 12 livros infantis. Fez desenhos de tecidos para Isaac Mizrahi e vários acessórios em exposição no Museu de Arte Moderna de Nova York. Mora em Nova York e falou à Folha por e-mail.  

FOLHA - Como é o processo de composição de seu blog?
MAIRA KALMAN
- O processo é orgânico. Eu caminho pelas ruas e leio e tiro fotos e penso sobre as coisas, e um tema surge. Talvez uma mini-obsessão do mês. Depois eu rabisco e colho mais imagens e tropeço em mais fragmentos e depois junto tudo. Depois escrevo e reescrevo e desescrevo.

FOLHA - Como você chegou à idéia de criar um blog?
KALMAN
- Eu não gosto da palavra blog. Blog soa como arrotar ou cuspir o que está na cabeça, de uma maneira apressada. O que eu tenho é uma coluna ou uma mini-história. Então me desculpe se eu prefiro a palavra coluna. Os editores da página virtual me perguntaram se eu queria. Eles queriam uma coluna ilustrada que fosse pessoal e narrativa. Além disso, eles não me deram limites.

FOLHA - Sua coluna mistura o banal e o denso. Qual é a diferença?
KALMAN
- Não há possibilidade de distinção entre o sublime e o trivial. É impossível alguém funcionar sem os dois e, na maior parte do tempo, ninguém tem certeza sobre qual é qual. Será que uma emoção por causa de um acontecimento pessoal é mais grandiosa ou mais banal do que ler Descartes? O cérebro está tentando resolver problemas o tempo todo. Não faz sentido categorizar as coisas. Mas, se eu tivesse que dizer algo sobre as coisas pequenas da vida, diria que elas me dão um prazer muito intenso.

FOLHA - Você parece ter ligação especial com a velhice. É uma resposta a uma histeria atual de juventude?
KALMAN
- A gente passa a vida tentando descobrir como viver e como morrer. É um processo que nos consome, quer a gente goste ou não. É claro, quando a gente envelhece, a noção do fim é mais real e terrível. Mas daí as distrações (o trabalho) se tornam mais prazerosas. E o amor. E as flores. Tudo cresce. Eu amo as crianças e os velhos do mesmo jeito. Mas é claro que é triste que o desejo de permanecer-aparentar a juventude tenha atingido picos histéricos. Eu espero que todos possamos envelhecer com graça, embora isso talvez não seja possível. Demora muito tempo para se dar valor a uma coisa que está por aí há muito tempo.

FOLHA - O fato de você ser judia e nova-iorquina é uma condição inescapável para o seu trabalho?
KALMAN
- Os meus pais saíram da Rússia para Israel nos anos 30. Essa realidade definiu os sentimentos deles e a maneira como eles nos criaram. O Holocausto era uma realidade constante na minha família. Nós carregávamos essa noção da fragilidade da vida misturada a uma determinação e flexibilidade quando nos mudamos para Nova York. Mas nós sempre nos consideramos estrangeiros, o que acho que foi na verdade uma coisa boa. Me fez olhar e ouvir. Algo que eu ainda amo fazer. A minha família também tinha um incrível senso de humor. Era uma parte muito importante nas nossas vidas. E a cultura. E a comida.

FOLHA - Você encontra beleza em cenas aparentemente feias. O que é a beleza para você?
KALMAN
- Eu não sei definir isso muito bem. A beleza está presente de muitas formas. Na integridade do desenho. Na arte gloriosa. No humor. Na determinação. Por que um bobe é belo? Por que Matisse é belo?

FOLHA - As respostas à sua coluna são afetuosas. Isso se deve a algum tipo de falta de afeto urbano?
KALMAN
- Acho que eu sou uma pessoa afetiva com certa dose de reserva. Acho que todos se sentem assim. Muito solitários, às vezes. O que se pode fazer?


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