São Paulo, sábado, 19 de fevereiro de 2011

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CRÍTICA ROMANCE

Fernández elabora um libelo contra imposições da trama

Em "Museu", autor funda a modernidade como espaço da literatura argentina


AO CRITICAR O ROMANCE EM SUA FORMA VARIADA DE TRATADO ETNOGRÁFICO OU SOCIOLÓGICO, O "MUSEU" TAMBÉM CRITICA A REALIDADE

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA


Macedonio Fernández era um enrolão, o procrastinador-mor. Desse talento para a postergação, criou uma arte ou, talvez, uma estética muito particular da arte. Enrolando, postergando, chegou à posteridade. Atrasado, mas chegou, é o que importa.
"Museu do Romance da Eterna", um livro composto quase em sua totalidade por prólogos e mais prólogos que terminam por não prologar nada, ou melhor: prefaciam justamente o nada existente além da última página.
Prorrogam em vez de prologar. Apresentam o vazio da realidade insubstancial: "Quero que o leitor saiba sempre que está lendo um romance, e não vendo um viver, não presenciando vida".
Malabarista da fala, Fernández enrolou tanto que não chegou a ver o "Museu do Romance da Eterna" em letra de imprensa.
Em entrevistas, Jorge Luis Borges (seu discípulo e maior propagandista na posteridade) dizia que precisava imitar a voz de Fernández para conseguir ler com satisfação o seu estilo tão tortuoso.
Borges não apreciava o "Museu". "Não creio que os romances (de Fernández) sejam bons", disse em entrevista a Sueli Barros Cassal -organizadora da primeira recolha de textos de Fernández no Brasil, "Tudo e Nada" (ed. Imago, R$ 36, 204 págs.).
Como ressalta a apresentação de Damián Tabarovsky ao "Museu", Borges conscientemente sequestrava o lugar do escritor para si, relegando a Fernández o posto de mestre da arte do diálogo, um ventríloquo de livros.

MODERNIDADE
Anarquista (chegou a fundar com amigos uma fracassada colônia no Paraguai), Fernández fez do individualismo feroz desse amálgama de reflexões e devaneios que constitui o romance uma ponte para a coletividade.
Obra literária consciente de seu artifício, "Museu" funda a modernidade como espaço geográfico da literatura argentina. Nele, tudo é imperfeição, da sintaxe labiríntica de voltagem semelhante às ideias até o incompleto, fragmentário e insatisfatório que reside no irresoluto.
Um libelo (meio distraído como o autor, claro) contra as imposições da relação de causa e efeito determinadas pelo papel da trama na concepção do relato, o romance de Fernández mimetiza nesse vaivém o próprio movimento amoroso de aproximação do apaixonado inseguro em direção à musa (a Eterna do título, uma Beatriz tão fugidia quanto impossível). Assim, pensar na mulher desejada é uma forma de recapturá-la e ao seu amor perdido.
Leitor devoto de Cervantes, Fernández sabia do papel da comédia na origem do realismo. Juan José Saer (1937-2005), que via o "Museu do Romance da Eterna" como "um monumento teórico sem precedentes na literatura de língua espanhola", afirmava a comédia como arte da realidade como tal.
Ao criticar o romance em sua forma variada de tratado etnográfico ou sociológico, o "Museu" também critica a realidade.
Desse modo, ao duvidar das especificidades próprias do ser argentino ou latino-americano, paradoxalmente funda a literatura argentina, tornando "anacrônica praticamente toda tentativa novelesca que se publicaria depois em língua espanhola".
Ricardo Piglia também pensa num "espanhol futuro" ao falar de Fernández, aproximando-o de Witold Gombrowicz, polonês que viveu décadas em Buenos Aires e lá produziu parte significativa de sua obra.
A ideia de um possível romance argentino viria desse cruzamento de vozes entre o idioleto de Fernández, o "romance polaco traduzido por um bando de conspiradores liderados por um conde apócrifo" (referência à tradução de "Ferdydurke", de Gombrowicz, coordenada por Virgilio Piñera num café) e o lunfardo com sotaque estrangeiro de Roberto Arlt.
Dessa mestiçagem, nasce a identidade e uma estética pessoal fundadora.
Crente equivocado como nenhum outro na imaginação do leitor, Fernández o promove a coautor, a irmão: "Por último, reconhece-me este mérito: reconhece-me que este romance pela quantidade de suas inconclusões é o que mais acreditou em tua fantasia, em tua capacidade e necessidade de completar e substituir finais".
Não se trata de acreditar no anseio do mimado leitor atual, habituado a não pensar em sua zona de conforto, mas quem disse que literatura tem a ver com vitória?

JOCA REINERS TERRON é autor de "Do Fundo do Poço Se Vê a Lua" (Companhia das Letras)

MUSEU DO ROMANCE DA ETERNA
AUTOR Macedonio Fernández
EDITORA Cosac Naify
TRADUÇÃO Gênese Andrade
QUANTO R$ 49 (266 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo



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