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São Paulo, quarta-feira, 19 de março de 2003

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MARCELO COELHO

O "desbranqueamento" da memória brasileira

Logo na entrada da galeria de arte do Sesi (av. Paulista, 1.313, tel. 0/xx/11/3146-7405; de ter. a sáb., das 10h às 22h; dom., das 10h às 19h), vemos alguns impressionantes exemplos de arte africana. Não só há grandes máscaras e esculturas, do tipo das que inspiraram os cubistas no começo do século passado, mas também uma coleção de bandeiras belíssimas, utilizadas em cerimônias cívicas asafo (não me pergunte mais sobre o tema), além das vibrantes e complicadas tapeçarias de Madalena Santos Reinbolt, que, postas ao lado das bandeiras, parecem reinterpretá-las visualmente.
É assim que a mostra "Negras Memórias, Memórias de Negros", com curadoria de Emanoel Araújo, não se concentra apenas na documentação histórica sobre a escravidão. Há, sem dúvida, fortes documentos sobre isso: desde a reprodução bem ampliada de gravuras que mostram o inacreditável interior de um navio negreiro, até relíquias perversamente "inocentes". Por exemplo, um manuscrito do século 19, em que estão caprichosamente copiados no papel os versículos de uma prece, organizados na forma de uma mandala. Com fervor, a reza circular pede a Deus que faça reaparecer um certo "crioulo fugido" para a tranquilidade de seu amo.
No mesmo espírito, há uma pintura muito bem-feitinha, que retrata um trecho da baía de Guanabara com aquela ingenuidade meio popular, meio rococó do século 18 brasileiro. Entre o mar verde e o céu azul, vemos um pequeno barco com velas brancas. À direita, nuvens de tempestade. O barco, informa-nos a legenda, é um navio negreiro. O quadrinho é um ex-voto, agradecendo a não sei que santo o fato de a carga humana ter chegado intacta ao seu destino.
Nada mais "natural", ao que parece, do que a escravidão no Brasil daquela época. A hipótese de que houvesse algo de irreligioso ou de moralmente inaceitável naquilo não era considerada. Numa das paredes da galeria, reproduzem-se antigos textos de jesuítas sobre a questão. A rotina, o interesse, a força da inércia logo tornaram dispensáveis os sofismas teológicos em favor daquele estado de coisas.
Voltando às esculturas africanas. Mais ou menos no centro geográfico da galeria, há uma peça bem surpreendente. É uma gorda sereia de madeira escura, com seios em ponta e escamas talhadas com esforço; está deitada de bruços no pedestal, como se fosse uma carranca de navio.
Sereias na África? Estranhei um pouco. Até que li a etiqueta de identificação da peça. Não era uma sereia. Era Iemanjá. A velha Iemanjá, tão nossa conhecida...
Só que, acostumado a pensar em Iemanjá como uma espécie de Nossa Senhora, de manto azul, flutuando sobre os mares, levei um susto. A deusa retornava à origem, revertia o processo de "branqueamento" pelo qual passou.
Esse "desbranqueamento" da memória brasileira é o maior feito da mostra. Revaloriza-se a presença dos negros na cultura nacional de um modo muito agudo e específico, que nada tem a ver com o velho paternalismo dos livros de escola nem com o espírito forçado e culposo do "politicamente correto".
Não é a memória "deles", dos "negros", o que está em jogo na exposição. Vemos ali que a "nossa" memória, a memória de qualquer brasileiro, é muito mais africana do que se pensa.
Graças à exposição, algumas imagens sacras, que poderíamos classificar simploriamente como peças de artesanato caipira, revelam uma negritude surpreendente: é assim que a clássica pomba dos estandartes e oratórios do Divino Espírito Santo aparece, na seleção de Emanoel Araújo, com toda a estranha força de uma divindade de Angola ou do Benin.
Outra surpresa, que faz dessa exposição um feito de "reescritura" da história brasileira. No fundo da sala, há um corredor meio espremido com fotos, textos e retratos a óleo de celebridades brasileiras. Claro, sabemos que Machado de Assis era mulato, e que o presidente Nilo Peçanha também. Não há nenhuma novidade nisso, tampouco no fato de que passaram por um processo de "branqueamento" na memória nacional; se nos lembramos deles como mulatos ou negros, é um pouco entre parênteses. Prova disso, aliás, é que Nilo Peçanha ainda é para nós um mistério iconográfico.
O incrível é que, na mostra, ficamos sabendo da negritude de outros brasileiros famosos: do geógrafo Teodoro Sampaio ao maestro Carlos Gomes, as fotos se sucedem, sem nenhum comentário didatizante. Também se reproduz na exposição certo soneto romântico, que lamenta a sorte de "quem passou pela vida em branca nuvem". Seu autor é Francisco Otaviano, um daqueles literatos dos tempos de d. Pedro 2º, de quem mal ouvimos falar. Tudo muda quando vemos na exposição, ao lado do soneto, o retrato do poeta. Ele era negro também.
Simetricamente, sabe-se que o poeta simbolista Cruz e Souza era negro e que, "por isso" (este é o subtexto dos manuais de literatura), fixava-se em imagens de alvura e de pureza, falando de luares, círios e neblinas. Na galeria do Sesi, expõe-se um trecho de Cruz e Souza em que descreve a África: são parágrafos em prosa, que parecem escritos com ferro em brasa.
Informado a respeito das diferenças entre prosa e verso, o célebre Monsieur Jourdain, de Molière, supreendia-se ao saber que sempre tinha falado em prosa, sem saber disso.
Apresentando imagens do Aleijadinho (o profeta Jeremias retratado como um escravo) ao lado das roupas do maracatu nordestino, as paisagens de Timóteo da Costa ao lado dos santos de nó de pinho do Vale do Paraíba e as obras de Rugendas retratando "die Baducca" (o batuque) em São Paulo ao lado das belas gravuras de Hélio de Oliveira (1929-1962), a exposição do Sesi sugere algo parecido com o caso de Monsieur Jourdain.
Uma coisa é saber que o candomblé veio da África, como o azeite-de-dendê e outras "contribuições culturais dos escravos", para usar a terminologia dos livros de história. Outra coisa é saber que a cultura brasileira fala africano, fala negro o tempo todo. Bem mais do que se admitia usualmente. Revelar essas memórias (recalcadas, apagadas, escondidas no fundo da nossa auto-imagem branca) é o extraordinário feito crítico dessa exposição.


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