|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
O "desbranqueamento" da memória brasileira
Logo na entrada da galeria
de arte do Sesi (av. Paulista,
1.313, tel. 0/xx/11/3146-7405; de
ter. a sáb., das 10h às 22h; dom.,
das 10h às 19h), vemos alguns impressionantes exemplos de arte
africana. Não só há grandes máscaras e esculturas, do tipo das que
inspiraram os cubistas no começo
do século passado, mas também
uma coleção de bandeiras belíssimas, utilizadas em cerimônias cívicas asafo (não me pergunte
mais sobre o tema), além das vibrantes e complicadas tapeçarias
de Madalena Santos Reinbolt,
que, postas ao lado das bandeiras,
parecem reinterpretá-las visualmente.
É assim que a mostra "Negras
Memórias, Memórias de Negros",
com curadoria de Emanoel Araújo, não se concentra apenas na
documentação histórica sobre a
escravidão. Há, sem dúvida, fortes documentos sobre isso: desde a
reprodução bem ampliada de
gravuras que mostram o inacreditável interior de um navio negreiro, até relíquias perversamente "inocentes". Por exemplo, um
manuscrito do século 19, em que
estão caprichosamente copiados
no papel os versículos de uma prece, organizados na forma de uma
mandala. Com fervor, a reza circular pede a Deus que faça reaparecer um certo "crioulo fugido"
para a tranquilidade de seu amo.
No mesmo espírito, há uma pintura muito bem-feitinha, que retrata um trecho da baía de Guanabara com aquela ingenuidade
meio popular, meio rococó do século 18 brasileiro. Entre o mar
verde e o céu azul, vemos um pequeno barco com velas brancas. À
direita, nuvens de tempestade. O
barco, informa-nos a legenda, é
um navio negreiro. O quadrinho
é um ex-voto, agradecendo a não
sei que santo o fato de a carga humana ter chegado intacta ao seu
destino.
Nada mais "natural", ao que
parece, do que a escravidão no
Brasil daquela época. A hipótese
de que houvesse algo de irreligioso ou de moralmente inaceitável
naquilo não era considerada. Numa das paredes da galeria, reproduzem-se antigos textos de jesuítas sobre a questão. A rotina, o interesse, a força da inércia logo tornaram dispensáveis os sofismas
teológicos em favor daquele estado de coisas.
Voltando às esculturas africanas. Mais ou menos no centro
geográfico da galeria, há uma peça bem surpreendente. É uma
gorda sereia de madeira escura,
com seios em ponta e escamas talhadas com esforço; está deitada
de bruços no pedestal, como se
fosse uma carranca de navio.
Sereias na África? Estranhei um
pouco. Até que li a etiqueta de
identificação da peça. Não era
uma sereia. Era Iemanjá. A velha
Iemanjá, tão nossa conhecida...
Só que, acostumado a pensar
em Iemanjá como uma espécie de
Nossa Senhora, de manto azul,
flutuando sobre os mares, levei
um susto. A deusa retornava à
origem, revertia o processo de
"branqueamento" pelo qual passou.
Esse "desbranqueamento" da
memória brasileira é o maior feito da mostra. Revaloriza-se a presença dos negros na cultura nacional de um modo muito agudo
e específico, que nada tem a ver
com o velho paternalismo dos livros de escola nem com o espírito
forçado e culposo do "politicamente correto".
Não é a memória "deles", dos
"negros", o que está em jogo na
exposição. Vemos ali que a "nossa" memória, a memória de qualquer brasileiro, é muito mais africana do que se pensa.
Graças à exposição, algumas
imagens sacras, que poderíamos
classificar simploriamente como
peças de artesanato caipira, revelam uma negritude surpreendente: é assim que a clássica pomba
dos estandartes e oratórios do Divino Espírito Santo aparece, na
seleção de Emanoel Araújo, com
toda a estranha força de uma divindade de Angola ou do Benin.
Outra surpresa, que faz dessa
exposição um feito de "reescritura" da história brasileira. No fundo da sala, há um corredor meio
espremido com fotos, textos e retratos a óleo de celebridades brasileiras. Claro, sabemos que Machado de Assis era mulato, e que o
presidente Nilo Peçanha também.
Não há nenhuma novidade nisso,
tampouco no fato de que passaram por um processo de "branqueamento" na memória nacional; se nos lembramos deles como
mulatos ou negros, é um pouco
entre parênteses. Prova disso,
aliás, é que Nilo Peçanha ainda é
para nós um mistério iconográfico.
O incrível é que, na mostra, ficamos sabendo da negritude de outros brasileiros famosos: do geógrafo Teodoro Sampaio ao maestro Carlos Gomes, as fotos se sucedem, sem nenhum comentário didatizante. Também se reproduz
na exposição certo soneto romântico, que lamenta a sorte de
"quem passou pela vida em branca nuvem". Seu autor é Francisco
Otaviano, um daqueles literatos
dos tempos de d. Pedro 2º, de
quem mal ouvimos falar. Tudo
muda quando vemos na exposição, ao lado do soneto, o retrato
do poeta. Ele era negro também.
Simetricamente, sabe-se que o
poeta simbolista Cruz e Souza era
negro e que, "por isso" (este é o
subtexto dos manuais de literatura), fixava-se em imagens de alvura e de pureza, falando de luares, círios e neblinas. Na galeria
do Sesi, expõe-se um trecho de
Cruz e Souza em que descreve a
África: são parágrafos em prosa,
que parecem escritos com ferro
em brasa.
Informado a respeito das diferenças entre prosa e verso, o célebre Monsieur Jourdain, de Molière, supreendia-se ao saber que
sempre tinha falado em prosa,
sem saber disso.
Apresentando imagens do Aleijadinho (o profeta Jeremias retratado como um escravo) ao lado
das roupas do maracatu nordestino, as paisagens de Timóteo da
Costa ao lado dos santos de nó de
pinho do Vale do Paraíba e as
obras de Rugendas retratando
"die Baducca" (o batuque) em
São Paulo ao lado das belas gravuras de Hélio de Oliveira (1929-1962), a exposição do Sesi sugere
algo parecido com o caso de Monsieur Jourdain.
Uma coisa é saber que o candomblé veio da África, como o
azeite-de-dendê e outras "contribuições culturais dos escravos",
para usar a terminologia dos livros de história. Outra coisa é saber que a cultura brasileira fala
africano, fala negro o tempo todo.
Bem mais do que se admitia
usualmente. Revelar essas memórias (recalcadas, apagadas, escondidas no fundo da nossa auto-imagem branca) é o extraordinário feito crítico dessa exposição.
Texto Anterior: Crítica: "Osbournes" deixa de ser "Simpsons" e vira "ER" Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: Artur Lescher é tema de lançamento Índice
|