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CRÍTICA
Jesus não salva, vende
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Alguns detalhes chamam a
atenção em particular na
"Paixão de Cristo" de Mel Gibson.
A caminho da crucificação, uma
mulher lhe estende uma toalha. O
Cristo enxuga o rosto suavemente, gravando no tecido a sombra
de seu rosto sofrido. Depois veremos Jesus ser pregado na cruz. Os
pregos cortam sua carne com tal
ímpeto, que já não vemos a carne
nem o sangue: o objeto em si -o
prego- é que fica em destaque.
Mel Gibson desenvolve, em um
nível, uma trama fetichista que
coloca em relevo uma série de objetos (reais ou fictícios) que freqüentam a imaginação de todos
os católicos desde a infância: o sudário, o cálice, a sandália, os pregos, a coroa de espinhos etc.
Ao mesmo tempo, convém não
esquecer, toda a mitologia desse
filme vem da fé católica (fé suposta, naturalmente) de seu diretor,
que o teria produzido com dinheiro do próprio bolso. Não se
trataria, assim, de um produto
-mas de um ato de fé.
Mais tarde, a equipe de marketing do filme divulgou a história
segundo a qual João Paulo 2º,
após ver o filme, teria dito que
"assim se passaram as coisas". À
fé, acrescenta-se então a asserção
de verdade: a autoridade papal
em pessoa garante a veracidade
do filme. Não importa que depois
a igreja tenha negado a história e
se fechado em copas -essa é a
versão que circulou e pegou.
Temos então uma operação de
marketing como raras vezes se
viu. Ela vende, em um nível, não
propriamente um produto, mas
um ato de fé. Não uma obra de arte, mas o que devemos receber como a própria verdade revelada.
No entanto, num outro nível,
incômoda, lá está a trama fetichista a atazanar a glória eterna dessa
operação perfeita. O sudário, o cálice etc, essas lembranças de procissão, de visitas a Aparecida, são
versões primitivas desses "gadgets" que a indústria cultural incorporou à operação comercial
dos filmes: o carro do Batman, o
bonequinho do E.T. etc.
Elas nos lembram de que esse
ato de fé é uma operação comercial gigantesca, que "autenticidade" é aquilo que cauciona essa
operação, e que "Paixão de Cristo" é nada mais que um produto
hollywoodiano, de resto dos mais
tradicionais.
Por conta da autenticidade, os
atores usam o aramaico ou o latim. Tudo mais em matéria de autenticidade vem das convenções
hollywoodianas: os carrascos romanos rindo a cada chicotada, as
nuvens que se deslocam rapidamente, as quedas em câmera lenta. Santo Deus! É um filme ou
uma clicheria? Em suas duas horas e pouco de duração, "Paixão"
não produz um instante de grandeza, ou de beleza, ou de talento.
É triste, no mais, a maneira como usa os recursos da montagem
clássica para jogar o espectador
contra os judeus e produzir, sim,
o espetáculo mais anti-semita
desde que Veit Harlan realizou "O
Judeu Süss", sob a supervisão de
Goebbels.
A questão é que o anti-semitismo do filme, assim como o sadomasoquismo, não respondem a
necessidades profundas. Eles entram, um pouco, como compensação à ausência atual de mito em
torno de Jesus. Assim, ao encanto
dos milagres ou mesmo da palavra de Cristo substituem-se os
shows de chibata.
Toda essa dor hiperbólica é, como o uso do aramaico e do latim,
sinal de autenticidade. Não o é,
contudo, de verdade. Configura
Jesus como um produto, não como o Salvador. Como produto e
marketing, será um sucesso. Vide
a bilheteria. Já a história, grande
demais, escapa entre os dedos
muito pequenos de Mel Gibson.
Avaliação:
A PAIXÃO DE CRISTO. Produção: Itália/
EUA, 2004. Quando: a partir de hoje nos
cines Frei Caneca Unibanco Arteplex 1,
Metrô Santa Cruz 6, Anália Franco 1,
Jardim Sul 8, Cinearte 1 e circuito.
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