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ARTIGO
Professor de Oxford relata ascensão e queda da negação de Deus no mundo moderno atreladas à Bastilha e ao Muro de Berlim
McGrath caminha pela história do ateísmo
JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Preparem o bolo: o ano de
2005 celebra o centenário de
um pensador francês conhecido.
Quando me refiro ao fato, todos
dizem: "Sartre, Sartre, o incontornável Sartre!". Verdade. Jean-Paul
nasceu em 1905. Mas, se me permitem, eu não estou falando de
Sartre. Ironicamente, estou falando no maior opositor de Sartre,
alguém que, durante parte de sua
vida intelectual, resolveu desmontar a falácia do existencialismo (e do marxismo) que era moda entre a intelligentsia da Rive
Gauche. Estou falando, claro, em
Raymond Aron.
Quem lê Aron hoje em dia? Certo, certo: Aron não tem o talento
literário e romanesco de Sartre.
Mas Aron tem aquilo que Sartre
não tem: lucidez política e uma
certa dignidade moral. A dignidade resume-se na biografia: quando a intelectualidade parisiense
olhava para Moscou como referência ideológica no pós-guerra,
Aron se recusava. E a lucidez
acompanha a dignidade: para
Aron, as ideologias que enterraram o século 20 eram, no essencial, "religiões seculares" que
preenchiam o vazio deixado pela
falência das teologias tradicionais.
Marx não destruíra o reino dos
céus. Ele apenas dera um outro
nome ao clube: o "reino do proletariado". A mensagem messiânica permanecia intacta. E o ópio do
povo virava ópio de intelectuais.
Eu me lembro de Aron porque
ele nasceu em 14 de março de
1905. Morreu 78 anos depois. Mas
também me lembro de Aron porque ele está presente, como fantasma e inspiração, na última
obra de Alister McGrath, "The
Twilight of Atheism" (o crepúsculo do ateísmo), caso sério na Inglaterra. McGrath sabe do que fala. Ele é professor de teologia histórica na Universidade de Oxford.
Mas também é, ou foi, ateu convicto. Até o dia em que a ausência
de Deus se converteu na presença
de Deus. Acontece.
A obra de McGrath pretende relatar a ascensão e a queda do
ateísmo no mundo moderno. E
"queda" é a palavra certa. Para o
autor, a história do ateísmo aparece marcada por duas quedas
centrais. A primeira, em 1789,
quando os revolucionários tomaram conta da Bastilha, no calor da
Revolução Francesa. E a segunda,
precisamente 200 anos depois,
quando o Muro de Berlim caía para alegria (ou espanto, ou horror:
você escolhe) da Europa e do
mundo. Em 1789, o ateísmo nascia como possibilidade. Em 1989,
era enterrado como alternativa.
Mas ordem na mesa. O que entendemos nós por "ateísmo"? A
palavra "atheistos", grega, como
grande parte de nosso linguajar,
significa aquele que nega a religião oficial de Atenas. Na versão
moderna, aquele que nega Deus.
Que recusa qualquer sentimento
religioso, tido por manipulativo e
falso e perigoso etc.
Mas é um erro pensar que os revolucionários franceses de 1789
eram todos "ateus" no sentido
pleno do termo. Muitos eram
deístas, e só por ignorância se pode confundir Voltaire com Helvétius, Rousseau com La Mettrie. Os
primeiros não negavam uma certa idéia filosófica de Deus, legitimada pela razão ou pela natureza.
Mas todos negavam a autoridade
da igreja, entidade obscurantista e
autoritária que contribuía para a
infelicidade dos homens. Em
1789, o ateísmo nasce como movimento na crítica feroz à instituição religiosa. E, com ele, nasce a
figura do intelectual "par excellence", uma espécie de padre sem
batina, em púlpito secular, que
aponta o caminho da salvação
terrena pelo exercício exclusivo
da Razão (com maiúscula).
Nomes? Ah, vários. Alister
McGrath elege três: Feuerbach,
Marx, Freud, discípulos do iluminismo continental. Uma santíssima trindade que apresenta semelhança basilar: a afirmação explícita de que Deus é criação humana. Inventamos Deus porque somos medrosos e mortais, dizia
Feuerbach. Ou porque habitamos
condições materiais miseráveis,
buscando consolação possível para uma existência impossível, dizia Marx. Ou, então, pelo sentimento de culpa que existe nos homens parricidas arrependidos,
que procuram a autoridade perdida como crianças medrosas que
recusam a vida adulta, nas palavras do fabuloso dr. Freud.
A influência foi determinante.
Não só pela defesa de Deus como
criação humana (Lucrécio disse o
mesmo séculos antes). Mas porque Feuerbach, Marx e Freud
apresentavam ao mundo uma ausência "científica" de Deus. Ele
não existe porque não existe prova da sua existência. Não podemos falar do que não podemos
provar. Silêncio, por favor.
Deus estava morto no coração
dos homens. Liberdade? Felicidade? Emancipação humana? Sem
dúvida. Mas alguém sempre aparece para estragar a festa. Pergunta: se Deus está morto, onde estão
os limites éticos para a ação humana? Dostoiévski entendeu a
natureza sinistra da inquietação e,
pela boca de Ivan Karamazov, o
escritor russo espreitou e profetizou o século 20. Sem Deus, restamos nós. Nossas possibilidades
infinitas de transformação humana -um eufemismo para transformar os próprios seres humanos. O resto, como se diz por aí,
foi história: a história da modernidade e dos seus tristes excessos.
Ironia: contra a intolerância e a
violência da igreja e de Deus, a intolerância e a violência da ideologia e dos homens.
Um ponto para McGrath: ele
tem razão quando afirma que as
tiranias do século 20 foram tiranias anti-religiosas e essencialmente atéias. E acerta quando
afirma que, depois de 1989, o apelo das "religiões seculares" foi para o lixo, com as pedras do Muro.
Mas posso apontar duas discórdias? A primeira lida com o regresso do divino à vida ocidental.
McGrath acredita que, caído o
Muro, se ergueram novas catedrais. A hipótese pode resultar em
certas partes do globo, como na
Ásia ou na América Latina, mas é
duvidoso que sirva para a Europa,
onde as religiões tradicionais estão em acentuado declínio.
O regresso de uma certa espiritualidade não significa um regresso à fé perdida de nossos antepassados. Vivemos, como escrevia
Zygmunt Bauman, num tempo
"líquido": por isso escolhemos
formas de espiritualidade "líquidas", sem grandes exigências e
com alguns proveitos. Uma espécie de "McDonald's da alma", que
permite às pessoas serem espirituais sem serem religiosas. De cabeça limpa.
E um ponto para mim: McGrath
fala do ateísmo entre duas quedas: a Bastilha e o Muro. Mas
McGrath esquece uma terceira
queda, tão importante quanto as
duas primeiras: a queda das torres
gêmeas numa manhã em Nova
York. Quando o 11 de Setembro
bateu às portas do Ocidente, este
relembrou como o fanatismo religioso não se distingue das "religiões seculares" que negaram as
almas para sacrificar os corpos.
O futuro a Deus pertence? Talvez, talvez. Mas o passado ensina
que a única forma de haver futuro
é evitar que Deus e os homens se
destruam numa dança macabra.
Meu ceticismo é uma forma de
salvação.
João Pereira Coutinho é colunista do
jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail:
jpcoutinho.br@jpcoutinho.com
The Twilight of Atheism: The
Rise and Fall of Disbelief in the
Modern World
Autor: Alister McGrath
Editora: Rider Books (em inglês)
Quanto: R$ 66, em média (306 págs.)
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