São Paulo, sábado, 19 de março de 2005

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ARTIGO

Professor de Oxford relata ascensão e queda da negação de Deus no mundo moderno atreladas à Bastilha e ao Muro de Berlim

McGrath caminha pela história do ateísmo

JOÃO PEREIRA COUTINHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Preparem o bolo: o ano de 2005 celebra o centenário de um pensador francês conhecido. Quando me refiro ao fato, todos dizem: "Sartre, Sartre, o incontornável Sartre!". Verdade. Jean-Paul nasceu em 1905. Mas, se me permitem, eu não estou falando de Sartre. Ironicamente, estou falando no maior opositor de Sartre, alguém que, durante parte de sua vida intelectual, resolveu desmontar a falácia do existencialismo (e do marxismo) que era moda entre a intelligentsia da Rive Gauche. Estou falando, claro, em Raymond Aron.
Quem lê Aron hoje em dia? Certo, certo: Aron não tem o talento literário e romanesco de Sartre. Mas Aron tem aquilo que Sartre não tem: lucidez política e uma certa dignidade moral. A dignidade resume-se na biografia: quando a intelectualidade parisiense olhava para Moscou como referência ideológica no pós-guerra, Aron se recusava. E a lucidez acompanha a dignidade: para Aron, as ideologias que enterraram o século 20 eram, no essencial, "religiões seculares" que preenchiam o vazio deixado pela falência das teologias tradicionais. Marx não destruíra o reino dos céus. Ele apenas dera um outro nome ao clube: o "reino do proletariado". A mensagem messiânica permanecia intacta. E o ópio do povo virava ópio de intelectuais.
Eu me lembro de Aron porque ele nasceu em 14 de março de 1905. Morreu 78 anos depois. Mas também me lembro de Aron porque ele está presente, como fantasma e inspiração, na última obra de Alister McGrath, "The Twilight of Atheism" (o crepúsculo do ateísmo), caso sério na Inglaterra. McGrath sabe do que fala. Ele é professor de teologia histórica na Universidade de Oxford. Mas também é, ou foi, ateu convicto. Até o dia em que a ausência de Deus se converteu na presença de Deus. Acontece.
A obra de McGrath pretende relatar a ascensão e a queda do ateísmo no mundo moderno. E "queda" é a palavra certa. Para o autor, a história do ateísmo aparece marcada por duas quedas centrais. A primeira, em 1789, quando os revolucionários tomaram conta da Bastilha, no calor da Revolução Francesa. E a segunda, precisamente 200 anos depois, quando o Muro de Berlim caía para alegria (ou espanto, ou horror: você escolhe) da Europa e do mundo. Em 1789, o ateísmo nascia como possibilidade. Em 1989, era enterrado como alternativa.
Mas ordem na mesa. O que entendemos nós por "ateísmo"? A palavra "atheistos", grega, como grande parte de nosso linguajar, significa aquele que nega a religião oficial de Atenas. Na versão moderna, aquele que nega Deus. Que recusa qualquer sentimento religioso, tido por manipulativo e falso e perigoso etc.
Mas é um erro pensar que os revolucionários franceses de 1789 eram todos "ateus" no sentido pleno do termo. Muitos eram deístas, e só por ignorância se pode confundir Voltaire com Helvétius, Rousseau com La Mettrie. Os primeiros não negavam uma certa idéia filosófica de Deus, legitimada pela razão ou pela natureza. Mas todos negavam a autoridade da igreja, entidade obscurantista e autoritária que contribuía para a infelicidade dos homens. Em 1789, o ateísmo nasce como movimento na crítica feroz à instituição religiosa. E, com ele, nasce a figura do intelectual "par excellence", uma espécie de padre sem batina, em púlpito secular, que aponta o caminho da salvação terrena pelo exercício exclusivo da Razão (com maiúscula).
Nomes? Ah, vários. Alister McGrath elege três: Feuerbach, Marx, Freud, discípulos do iluminismo continental. Uma santíssima trindade que apresenta semelhança basilar: a afirmação explícita de que Deus é criação humana. Inventamos Deus porque somos medrosos e mortais, dizia Feuerbach. Ou porque habitamos condições materiais miseráveis, buscando consolação possível para uma existência impossível, dizia Marx. Ou, então, pelo sentimento de culpa que existe nos homens parricidas arrependidos, que procuram a autoridade perdida como crianças medrosas que recusam a vida adulta, nas palavras do fabuloso dr. Freud.
A influência foi determinante. Não só pela defesa de Deus como criação humana (Lucrécio disse o mesmo séculos antes). Mas porque Feuerbach, Marx e Freud apresentavam ao mundo uma ausência "científica" de Deus. Ele não existe porque não existe prova da sua existência. Não podemos falar do que não podemos provar. Silêncio, por favor.
Deus estava morto no coração dos homens. Liberdade? Felicidade? Emancipação humana? Sem dúvida. Mas alguém sempre aparece para estragar a festa. Pergunta: se Deus está morto, onde estão os limites éticos para a ação humana? Dostoiévski entendeu a natureza sinistra da inquietação e, pela boca de Ivan Karamazov, o escritor russo espreitou e profetizou o século 20. Sem Deus, restamos nós. Nossas possibilidades infinitas de transformação humana -um eufemismo para transformar os próprios seres humanos. O resto, como se diz por aí, foi história: a história da modernidade e dos seus tristes excessos. Ironia: contra a intolerância e a violência da igreja e de Deus, a intolerância e a violência da ideologia e dos homens.
Um ponto para McGrath: ele tem razão quando afirma que as tiranias do século 20 foram tiranias anti-religiosas e essencialmente atéias. E acerta quando afirma que, depois de 1989, o apelo das "religiões seculares" foi para o lixo, com as pedras do Muro.
Mas posso apontar duas discórdias? A primeira lida com o regresso do divino à vida ocidental. McGrath acredita que, caído o Muro, se ergueram novas catedrais. A hipótese pode resultar em certas partes do globo, como na Ásia ou na América Latina, mas é duvidoso que sirva para a Europa, onde as religiões tradicionais estão em acentuado declínio.
O regresso de uma certa espiritualidade não significa um regresso à fé perdida de nossos antepassados. Vivemos, como escrevia Zygmunt Bauman, num tempo "líquido": por isso escolhemos formas de espiritualidade "líquidas", sem grandes exigências e com alguns proveitos. Uma espécie de "McDonald's da alma", que permite às pessoas serem espirituais sem serem religiosas. De cabeça limpa.
E um ponto para mim: McGrath fala do ateísmo entre duas quedas: a Bastilha e o Muro. Mas McGrath esquece uma terceira queda, tão importante quanto as duas primeiras: a queda das torres gêmeas numa manhã em Nova York. Quando o 11 de Setembro bateu às portas do Ocidente, este relembrou como o fanatismo religioso não se distingue das "religiões seculares" que negaram as almas para sacrificar os corpos.
O futuro a Deus pertence? Talvez, talvez. Mas o passado ensina que a única forma de haver futuro é evitar que Deus e os homens se destruam numa dança macabra. Meu ceticismo é uma forma de salvação.


João Pereira Coutinho é colunista do jornal português "Expresso", entre outras publicações. Ele escreve quinzenalmente para a Folha Online. E-mail: jpcoutinho.br@jpcoutinho.com

The Twilight of Atheism: The Rise and Fall of Disbelief in the Modern World
Autor:
Alister McGrath
Editora: Rider Books (em inglês)
Quanto: R$ 66, em média (306 págs.)


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