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NELSON ASCHER
Poesia e letra de canção
Dilemas entre essas duas artes estão sempre na discussão sobre a questão da hierarquia
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VOLTA E MEIA, a questão está de
novo em pauta e sua discussão, mais no Brasil que no estrangeiro, costuma ser acalorada.
Abordei-a anos atrás neste espaço. O
que tentei foi mostrar que chamar
letras de música de poesia, como se
elas em nada se distinguissem daquela que se escreve, antes confunde do que melhora nossa compreensão de como ambas as artes funcionam.
Há países onde o problema nem se
coloca. No mundo anglo-saxão, como há espaço, mercado e consumidores de sobra para as duas artes, os
praticantes de cada qual tendem a
aceitar seu estatuto específico sem
necessidade de turvar as águas. Na
França, terra de uma Academia de
Letras ainda hoje levada a sério e
herdeira de uma tradição vigorosamente normativa, os críticos e demais mandarins defendem com
unhas e dentes uma distinção hierárquica segundo a qual só a poesia
escrita merece ser chamada de arte.
Era assim no Brasil também até
que surgiram Vinícius de Morais,
seus contemporâneos e sucessores.
A infinidade de disputas muito mais
pessoais e/ou ideológicas que literárias impediu e impede até hoje o estabelecimento de um cânone das gerações que vieram após João Cabral.
Depois do pernambucano, aliás, a
produção nacional perdeu popularidade e isso coincidiu com duas décadas e meia de apogeu da MPB (1960-85), quando a inteligência local
achou um jeito de converter uma arte considerada menor no veículo
dos principais debates da época.
A poesia escrita eclipsou-se parcialmente entre nós à medida que a
cantada chegava ao centro do palco.
Não há nada de errado nisso, pois o
modo como as artes se inter-relacionam não é constante, varia de acordo com o tempo e o lugar. A memória, contudo, do estatuto superior da
poesia e, em certa medida, a reação
antimodernista adiaram o reconhecimento das realizações de duas ou
três gerações de letristas. Reagindo a
essa negação, os que eram capazes
de perceber qualidade onde quer
que ela surgisse preferiram, em vez
de acentuar a maturidade atingida
por uma arte diferente, reivindicar
para as letras o mesmo estatuto daquela previamente considerada nobre.
Tais dilemas já deveriam, a essa altura, ser história. São raros os que
negariam atualmente o valor das
melhores canções produzidas no
país e, inclusive entre os críticos e
especialistas, poucos relutam em
admitir que o texto delas pode ser
tão poético (seja na acepção de conscientemente elaborado de acordo
com regras exigentes, seja na de portadores de sentidos concentrados)
quanto o da melhor poesia escrita.
Ainda assim, tão logo a questão do
valor desliza rumo à confusão conceitual, perde-se clareza.
Quem compare dois textos, um
tão bom quanto o outro, sem saber
que um provém de um livro e o outro, de uma canção, achará difícil entender ou explicar tanto diferenças
importantes entre ambos como o
uso corriqueiro em um de recursos
que mal se apresentam no outro. Caso, em vez de dois textos individuais,
ele justaponha uma quantidade generosa de poemas e letras (cem, digamos, de cada qual), as diferenças
acima se tornarão explícitas demais
para serem negadas.
Se letras e poemas, por mais que
compartilhem do mesmo "pool" de
instrumentos retóricos, não são, no
mínimo, duas categorias distintas de
escrita ou de criação, como explicar,
por exemplo, que a maioria esmagadora das canções fala de amor, enquanto a poesia atual aborda uma
faixa bem mais ampla de assuntos?
E há o lado formal: o grosso dos
poetas contemporâneos opta pelo
verso livre e pelas formas abertas. As
letras, por seu turno, continuam se
valendo de metro, rima, estrofe, refrão, ferramentas, enfim, a que a
poesia de hoje mal recorre, ou utiliza
em circunstâncias especiais. Seja como for, usá-las agora num poema escrito equivale a escolher uma certa
poética, às vezes assumidamente
conservadora. Nada disto se aplica
de modo imediato ou idêntico aos
letristas.
Nem se pode esquecer a tradição,
ou seja, o diálogo que uma geração
estabelece com as anteriores. E, se
bem que tanto poetas quanto letristas "conversem" neste sentido com
todos os tipos de artífices (não só) da
palavra, tampouco deixa de ser esperado que, se um poeta atual se
preocupará em resolver problemas
colocados por Drummond ou Murilo Mendes, um letrista sobretudo
aprenderá com e/ou se revoltará
preferencialmente contra Chico
Buarque ou Caetano Veloso.
Em outras palavras, sem ignorar
as outras, cada qual filia-se mais ou
menos voluntariamente a uma tradição que é paralela, mas distinta. (O
tema é extenso e, portanto, continua
na próxima coluna.)
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