São Paulo, segunda-feira, 19 de março de 2007

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NELSON ASCHER

Poesia e letra de canção


Dilemas entre essas duas artes estão sempre na discussão sobre a questão da hierarquia

VOLTA E MEIA, a questão está de novo em pauta e sua discussão, mais no Brasil que no estrangeiro, costuma ser acalorada. Abordei-a anos atrás neste espaço. O que tentei foi mostrar que chamar letras de música de poesia, como se elas em nada se distinguissem daquela que se escreve, antes confunde do que melhora nossa compreensão de como ambas as artes funcionam.
Há países onde o problema nem se coloca. No mundo anglo-saxão, como há espaço, mercado e consumidores de sobra para as duas artes, os praticantes de cada qual tendem a aceitar seu estatuto específico sem necessidade de turvar as águas. Na França, terra de uma Academia de Letras ainda hoje levada a sério e herdeira de uma tradição vigorosamente normativa, os críticos e demais mandarins defendem com unhas e dentes uma distinção hierárquica segundo a qual só a poesia escrita merece ser chamada de arte.
Era assim no Brasil também até que surgiram Vinícius de Morais, seus contemporâneos e sucessores. A infinidade de disputas muito mais pessoais e/ou ideológicas que literárias impediu e impede até hoje o estabelecimento de um cânone das gerações que vieram após João Cabral. Depois do pernambucano, aliás, a produção nacional perdeu popularidade e isso coincidiu com duas décadas e meia de apogeu da MPB (1960-85), quando a inteligência local achou um jeito de converter uma arte considerada menor no veículo dos principais debates da época.
A poesia escrita eclipsou-se parcialmente entre nós à medida que a cantada chegava ao centro do palco. Não há nada de errado nisso, pois o modo como as artes se inter-relacionam não é constante, varia de acordo com o tempo e o lugar. A memória, contudo, do estatuto superior da poesia e, em certa medida, a reação antimodernista adiaram o reconhecimento das realizações de duas ou três gerações de letristas. Reagindo a essa negação, os que eram capazes de perceber qualidade onde quer que ela surgisse preferiram, em vez de acentuar a maturidade atingida por uma arte diferente, reivindicar para as letras o mesmo estatuto daquela previamente considerada nobre.
Tais dilemas já deveriam, a essa altura, ser história. São raros os que negariam atualmente o valor das melhores canções produzidas no país e, inclusive entre os críticos e especialistas, poucos relutam em admitir que o texto delas pode ser tão poético (seja na acepção de conscientemente elaborado de acordo com regras exigentes, seja na de portadores de sentidos concentrados) quanto o da melhor poesia escrita. Ainda assim, tão logo a questão do valor desliza rumo à confusão conceitual, perde-se clareza.
Quem compare dois textos, um tão bom quanto o outro, sem saber que um provém de um livro e o outro, de uma canção, achará difícil entender ou explicar tanto diferenças importantes entre ambos como o uso corriqueiro em um de recursos que mal se apresentam no outro. Caso, em vez de dois textos individuais, ele justaponha uma quantidade generosa de poemas e letras (cem, digamos, de cada qual), as diferenças acima se tornarão explícitas demais para serem negadas.
Se letras e poemas, por mais que compartilhem do mesmo "pool" de instrumentos retóricos, não são, no mínimo, duas categorias distintas de escrita ou de criação, como explicar, por exemplo, que a maioria esmagadora das canções fala de amor, enquanto a poesia atual aborda uma faixa bem mais ampla de assuntos?
E há o lado formal: o grosso dos poetas contemporâneos opta pelo verso livre e pelas formas abertas. As letras, por seu turno, continuam se valendo de metro, rima, estrofe, refrão, ferramentas, enfim, a que a poesia de hoje mal recorre, ou utiliza em circunstâncias especiais. Seja como for, usá-las agora num poema escrito equivale a escolher uma certa poética, às vezes assumidamente conservadora. Nada disto se aplica de modo imediato ou idêntico aos letristas.
Nem se pode esquecer a tradição, ou seja, o diálogo que uma geração estabelece com as anteriores. E, se bem que tanto poetas quanto letristas "conversem" neste sentido com todos os tipos de artífices (não só) da palavra, tampouco deixa de ser esperado que, se um poeta atual se preocupará em resolver problemas colocados por Drummond ou Murilo Mendes, um letrista sobretudo aprenderá com e/ou se revoltará preferencialmente contra Chico Buarque ou Caetano Veloso.
Em outras palavras, sem ignorar as outras, cada qual filia-se mais ou menos voluntariamente a uma tradição que é paralela, mas distinta. (O tema é extenso e, portanto, continua na próxima coluna.)


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