São Paulo, Sexta-feira, 19 de Março de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Oscar e "Central do Brasil" são distantes"

AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas

O cineasta Walter Salles, 43 no próximo mês, substituiu o piloto Ayrton Senna no papel do herói pátrio vitorioso na mitologia popular brasileira. Um Oscar, dos dois possíveis (atriz, com Fernanda Montenegro, e filme estrangeiro), teria, no domingo, o sabor do primeiro título mundial de Fórmula 1 de Senna.
Salles e Senna, poucos sabem, foram contemporâneos de juventude nas pistas brasileiras de kart. "Mas jamais concorremos", lembra Salles com um sorriso.
O diretor de "Central do Brasil" falou com exclusividade à Folha no último domingo, horas antes de embarcar para Los Angeles. Tão atencioso quanto perfeccionista, complementou algumas respostas por fax ao desembarcar na capital do cinema americano.
Salles comenta sua presença no Oscar, reconhece-se mais à vontade na disputa amanhã do prêmio de melhor filme estrangeiro no Independent Spirit Awards, elogia Roberto Benigni, nega estar preparando um novo projeto a ser rodado na Itália e fala das lições de seus filmes pré-"Central". Leia abaixo trechos de sua entrevista.
Folha - A queda na auto-estima brasileira com a crise da desvalorização do real multiplicou a expectativa em torno de "Central" no Oscar. Como você vê suas chances?
Walter Salles -
Em primeiro lugar, é preciso manter uma certa serenidade em relação a este processo. "Central do Brasil" é um filme feito na batida do coração, um filme simples e sem maquiagem, sem truques, com o único desejo de ser essencialmente brasileiro.
O filme foi feito em família, com a participação de muitos não-atores, de muita gente que estreava atrás da câmera. Jamais poderíamos antecipar tudo que acabou acontecendo. Para mim, o maior prêmio que "Central" poderia ter tido ele já recebeu, que foi o diálogo com o público brasileiro. Cinema brasileiro deve ser feito antes de mais nada para o Brasil, e a conquista dos mercados externos deve ser apenas a consequência do propósito inicial de realizar um filme olhando para dentro do país.
O Oscar também tem características próprias, que me parecem conceitualmente distantes de "Central do Brasil". "Central" não é um filme "glamourizável", dada a sua estrutura claramente documental. Nesse sentido, sinto-me plenamente confortável com o fato da Sony Classics ter optado por investir pouco no marketing do filme. É uma estratégia correta, que respeita o que o filme é.
E, se o concorrente gasta US$ 10 milhões numa blitzkrieg publicitária para provar que o filme dele é bom, esse é um problema dele. Da nossa parte, prefiro que o nosso filme se sustente pelas suas próprias qualidades ou defeitos. O sucesso de público que "Central" alcançou na Europa ou nos EUA foi em grande parte feito pelo boca a boca. É bom que tenha sido assim.
Se a Academia resolver nos dar o nosso 34º prêmio, reconhecendo o talento extraordinário de Fernanda Montenegro, ou o filme, tanto melhor para o cinema brasileiro e para todos aqueles que viveram essa aventura. Se não, a vida continua, e tenho a sincera impressão de que "Central" já cumpriu o seu papel, nos levando muito mais longe do que poderíamos sonhar.

Folha - Você assistiu aos concorrentes diretos, incluindo seu grande rival, "A Vida É Bela"?
Salles -
Vi "A Vida é Bela" em cassete e prefiro não comentar um filme sem ter a oportunidade de vê-lo na tela grande. De qualquer forma, gosto de Benigni e considero-o um grande comediante.
Folha - E os candidatos ao Independent Spirit Awards, ao qual você concorre amanhã?
Salles -
Vi todos ("Hana-Bi", "Festa de Família", "A Enguia" e "O General") e tenho admiração pelos membros dessa família. Considero justo qualquer resultado, tal a qualidade dos filmes selecionados, se bem que em última instância eu torceria por "Hana-Bi" e "Festa de Família", nesta ordem.
Folha - Quando será a estréia brasileira do novo filme, "O Primeiro Dia", em que você retoma a parceria com Daniela Thomas?
Salles -
Em princípio, no final de 99. Esse filme só existe graças a Daniela Thomas, que escreveu quase todo o roteiro sozinha, preparou sozinha os atores, enquanto eu filmava e montava "Central".
Folha - É verdade que seu próximo projeto será parcialmente rodado em Roma?
Salles -
Se eu fosse dirigir todos os filmes que estão dizendo que vou dirigir, iria ficar tomado até 2010. Os dois próximos filmes deverão ser com Arthur Cohn, e o resto é, por enquanto, especulação. É evidente que a exposição de "Central" gerou ofertas, aquele cerco previsível de agentes.
Folha - Um Oscar poderia passar a falsa impressão de que tudo vai bem com o cinema brasileiro. Uma nova crise se instalou. Quais medidas de apoio governamental você defende?
Salles -
Não acredito em cinematografias fortes e representativas sem apoio do Estado. Defendo: 1. Cobrança de um adicional de bilheteria que geraria um fundo de produção para o cinema brasileiro. Esse fundo seria administrado por empresas que funcionariam como a Riofilme e que incentivariam tanto o cinema experimental tão necessário quanto o cinema mais popular. 2. Cobrança de taxa por metro linear de filme. 3. Sou a favor do estabelecimento (e cumprimento) da lei que obriga cada cinema ma a reservar um certo número de dias para os filmes brasileiros.
Folha - O que você aprendeu com "A Grande Arte"?
Salles -
A não realizar um filme que se distanciasse da minha experiência de documentarista, que é o meu território de predileção, tanto na maneira de fazer quanto no conteúdo. O documentário tinha sido o caminho escolhido para alguém que, vindo de fora, tinha optado por olhar o Brasil. Não é por acaso que os primeiros documentários que realizei são de artistas que, como Frans Krajcberg e Tomie Ohtake, tornaram-se brasileiros por eleição e não por obrigação. A minha admiração por Hector Babenco tem raiz nesse mesmo estado de coisas, aliás.
Folha - E com o curta "Socorro Nobre" e o segundo longa, "Terra Estrangeira"?
Salles -
Aí estão os verdadeiros pontos de inflexão, com a descoberta dos temas que me são realmente próximos: a questão da identidade, não só a dos personagens, mas também a de uma identidade nacional, as formas diversas de exílio e a importância do afeto.
Foi a descoberta também de um processo que permitiu realizar ficção com o mesmo prazer que documentários. Foi feita a quatro mãos, junto com a Daniela Thomas. Ela me ensinou o quanto o ensaio é importante para dar vida aos personagens e o quanto isso nos dá liberdade para improvisar na hora da filmagem. O final improvisado de "Terra Estrangeira" e todas as improvisações que oxigenaram e transformaram "Central do Brasil" são a consequência direta desse método.
Folha - Com quem você se corresponde hoje?
Salles -
Com Socorro Nobre e todas as pessoas que têm escrito para falar de "Central", com tanto afeto e generosidade. Aliás, estou com atraso nas respostas e peço perdão publicamente por isso.


Texto Anterior: Oscar 99: Clima de "Pra frente, 'Central'"
Próximo Texto: Espanhol é o azarão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.