São Paulo, sexta-feira, 19 de abril de 2002

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CRÍTICA

Consciência e caos das coisas

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Para Agnès Varda, a liberdade é a realidade que a consciência se dá. A beleza de "Os Catadores e Eu" está na facilidade com que ela transforma essa liberdade, potencial em qualquer documentário, numa poética.
Partindo de uma idéia geral para confrontá-la, intuitivamente, com a realidade -método que sua geração, a da nouvelle vague, herdou de Rossellini-, Varda pôde criar, sem se apoiar em qualquer esquematismo nem perder o rumo, uma poética que se equilibra sutilmente entre a sua consciência e o caos das coisas.
Ao mesmo tempo em que incorpora todas as coisas, lançando-se, mais ou menos ao acaso, de um objeto a outro, de um lugar a outro, de um personagem ao outro, Varda não deixa de se colocar sempre inteiramente em jogo.
Não se trata apenas, para ela, de incluir-se entre as diversas categorias de catadores (esses novos heróis da sociedade contemporânea, do hiperconsumo e do desperdício) que tematiza em seu filme. Trata-se antes de surpreender, a todo momento, o fluxo da vida, da sua e das dos outros.
Varda vai de um devir a outro, percebe as próprias e envelhecidas mãos como se fossem as de um animal, caminhões na estrada como se fossem brinquedos, batatas como se fossem corações, filma os alimentos em seu devir lixo, o lixo em seu devir alimento, em seu devir arte.
A documentarista parece estar sempre no caminho entre duas categorias. Sempre à procura de um "e" para acrescentar à imagem de seus personagens, torná-la menos classificável: o vinicultor que também é psicanalista e filósofo, o catador que também é artista e o artista que também é catador, o chefe de cozinha que também é catador, o catador que também é compositor...
A série culmina no personagem de um ex-biólogo que cata os restos das feiras parisienses para se alimentar. Cercando e conquistando o personagem aos poucos, Varda descobre que ele ganha a vida vendendo revistas na porta do metrô e dá aulas de alfabetização de graça para imigrantes. O baralho de categorias de Varda encontra assim o seu desfecho nas inusitadas associações de palavras que surgem do diálogo entre o professor-catador e os alunos-imigrantes.


Os Catadores e Eu
Les Glaneurs et La Glaneuse
    
Direção: Agnès Varda
Produção: França, 2000
Quando: hoje, às 22h, no Cinesesc (r. Augusta, 2.075, São Paulo, tel. 0/xx/11/ 3082-0213)
Quanto: entrada franca




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