São Paulo, terça, 19 de maio de 1998

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Paris leiloa humor de 68

Reprodução
"La beauté est dans la rue" (a beleza está na rua), do Ateliê Popular



Cartazes do Ateliê Popular, feitos há 30 anos com restos de papel e tinta doada, são vendidos por até US$ 1.100 na França


RODRIGO AMARAL
de Paris

"Sera-t-il chomeur?" (será ele um desempregado?), perguntavam os estudantes de 68 em um cartaz com um bebê desenhado, feito com restos de papel e tinta doada.
Trinta anos depois, o desemprego continua a ser um dos maiores problemas do mundo, e os cartazes do Ateliê Popular estão em exposição na galeria Beauborg, até o final de junho.
Com desenhos nada elaborados e frases virulentas, mas bem-humoradas, os trabalhos dos manifestantes também acabaram virando disputadas peças de colecionador.
No dia 22 de março (dia da formação do Movimento 22 de Março, liderado por Daniel Cohn-Bendit), o marchand Jean-Pierre Lellièvre, 39, realizou um leilão em Chartres no qual os cartazes chegaram a ser vendidos por até 6.500 francos (cerca de US$ 1.100).
O mais caro foi aquele em que um CRS (membro das Companhias Republicanas de Segurança) carrega um escudo e um cassetete, em pose de quem está atacando alguém.
Embaixo, há a inscrição "CRS=SS". A SS era a polícia política da Alemanha nazista.
Segundo Lellièvre, o antigo dono do acervo era um contemporâneo das manifestações que conseguiu juntar um grande número de cartazes.
"Tanto ex-participantes dos eventos de 68 quanto pessoas mais jovens que apreciam as idéias do movimento compraram os cartazes", afirma Lellièvre.
Ateliê
O Ateliê Popular foi o anárquico instrumento de propaganda dos manifestantes.
Jovens artistas, estudantes (principalmente de arquitetura) e manifestantes em geral invadiram, em 14 de maio, a tradicional Escola de Belas Artes de Paris e reservaram uma de suas salas para a produção dos cartazes.
Esses cartazes imortalizaram os lemas da bem-humorada revolução que os estudantes pretendiam fazer.
Um dos mais célebres dizia "Le chienlit, c'est lui" (a desordem é ele), representando um narigudo general Charles de Gaulle, que havia dito que as manifestações de estudantes significavam "le chienlit" (um termo meio vulgar para dizer "desordem").
Outro afirmava que "La beauté est dans la rue" (a beleza está na rua) e apresentava uma garota arremessando um paralelepípedo (a arma preferida dos estudantes em seus combates contra a polícia).
O ácido senso de humor não poupava nem mesmo alguns dos grupos que engrossavam as manifestações e eram supostos companheiros de luta.
"Je suis marxiste, tendance Groucho" (sou marxista, tendência Groucho), afirmava outro cartaz, valendo-se do humorista norte-americano Groucho Marx para ironizar a veneração de Karl Marx pelos grupos de linha comunista.
Poucos artistas
Sem recursos, contando apenas com a vontade e a criatividade dos jovens revolucionários, o ateliê teve que se virar como pôde.
O que é mais irônico é o fato de não terem sido feitos basicamente por artistas, segundo o artista plástico Pierre Buraglio, 59, um dos participantes do ateliê.
"O ateliê nasceu espontaneamente, os jovens artistas e os estudantes ajudaram a organizá-lo, mas, felizmente, não foram os militantes que determinaram o seu trabalho, mas a gente da rua, que tinha muita criatividade e ferocidade", afirma Buraglio.
"Não era um ateliê de artistas, mas um local onde havia artistas, e onde estes se colocaram a serviço de uma causa. Quem fazia os cartazes eram pessoas anônimas, que passavam por lá, e os estudantes. Muito raramente eram os artistas."
O processo de impressão escolhido pelos manifestantes foi o da serigrafia, por sua simplicidade de execução.
"Qualquer pessoa, depois de algumas horas, conseguia aprender como fazer e podia ajudar a imprimir os cartazes", lembra o gráfico Eric Seydoux, 51, outro dos participantes do Ateliê Popular.
O papel era obtido dos jornais parisienses, muitos dos quais parados durante a greve geral de maio.
Os manifestantes conseguiam os finais das bobinas de papel, que não tinham mais uso para as gráficas dos jornais.
Para arranjar a tinta, os manifestantes tiveram que botar a mão no bolso. Os responsáveis pelo material, como Seydoux, recolhiam doações de dinheiro e compravam o produto. Segundo ele, houve também empresas que doaram tintas ao ateliê.
Com esse esquema um tanto rudimentar, os manifestantes conseguiram espalhar sua mensagem por toda Paris.
Não havia controle sobre as quantidades impressas, mas Buraglio estima que tenham sido feitos perto de 1 milhão de cartazes durante um mês, aproximadamente, que o Ateliê Popular funcionou.
Sem muita clareza
O exemplo de Seydoux, aliás, ilustra bem o perfil dos participantes do ateliê -e, a partir de um momento, das próprias manifestações de 68 em Paris.
Aos 21 anos, trabalhando como gráfico, Seydoux não era nem estudante universitário nem operário sindicalizado, mas sentiu-se atraído pelo movimento.
"O momento era muito confuso, as coisas não estavam bem claras. A gente se engajava no movimento sem pensar muito no que estava fazendo", lembra.
Se esse engajamento voluntário era um sinal da aceitação pela população das manifestações e animava os militantes que acreditavam em uma revolução de caráter popular, acabava atrapalhando um bom tanto na hora de elaborar os cartazes com que os revolucionários mais "sérios" queriam orientar o movimento.
Como exemplo, Buraglio, que então era um militante trotskista, cita as esculhambações de que foi vítima o general De Gaulle, então presidente da República, desenhado sempre com um grande nariz e com seu legendário quepe.
"Ele era uma figura histórica, simbolizava a Resistência da Segunda Guerra. Não éramos favoráveis a esse tipo de cartaz, mas todo mundo que via gostava", recorda.
Invadido pela polícia, o Ateliê Popular acabou sendo dissolvido. A linguagem dos cartazes foi absorvida pela publicidade. Hoje, Buraglio é ele mesmo professor da Escola de Belas Artes.



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